23 março 2009

Dar um tempo no Blog




Resolvemos fazer uma parada estratégica e temporária nos nossos artigos.

Eles foram feitos com muita dedicação e entusiasmo. Entretanto não sabemos como estão sendo percebidos pelos leitores, pois apenas alguns nos deram retorno sobre suas impressões. Na realidade não sabemos se a medida estava certa, se poderíamos aprofundar mais alguns conceitos e idéias ou se seria melhor elaborar artigos mais leves.

Ocorre ainda que precisamos dedicar nosso tempo atual a um antigo projeto:

“Grande Sertão: Uma Travessia Arquetípica”.

Isso mesmo, pretendemos fazer uma leitura da obra maravilhosa de Guimarães Rosa com a referência da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Acreditamos que o resultado poderá ser gratificante. O projeto é a amplificação de uma monografia já apresentada num curso de pós-graduação.

Como aperitivo, eis algumas citações do grande Rosa nessa sua obra:

“Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água - carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (p. 289). Instigante relação entre a árvore símbolo do cerrado e do sertão brasileiros na sua necessidade de “espelho”, o que também ocorre com o bom professor que se vê no aluno. Ele não pode ser uma ameaça e sim a possibilidade de crescimento de ambas as partes! E a dinâmica da aprendizagem sempre atinge o EDUCADOR. Na realidade, nem todo professor é um educador, mas seria esse o grande ideal!!! E Rosa deve ter se referido a essa diferença.


“O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. (p. 21). Está aí apresentada uma deixa para o processo de construção de uma individualidade que leva toda uma vida: o Processo de Individuação – conceito basilar de Jung na sua psicologia.

“Qual é o caminho certo da gente? Nem para frente, nem para trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito esperando? Mas quem é que sabe como? Viver ..... o senhor já sabe: viver é etcétera.” (p. 87).

“O ruim com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera essa gastança. Moço: Deus é paciência ... Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola ... tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece. Deus não arrocha o regulamento. Deixa: bobo com bobo – um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta (p. 16).

E, para finalizar, uma pequena amostra da gente do seu sertão e dos seus Gerais: “Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo ... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa ... para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” (p. 14).

Após essa pequena mostra da capacidade impressionante de comunicação de Rosa, tentando unir o sertão interior e o exterior, fazemos nossa despedida. Que não seja por muito tempo...

E se você quiser se comunicar, dar sugestões, comentar......... o que for, entre em contato:

Kairos800@yahoo.com.br

Um grande abraço!

Bosco e Ingrid

20 março 2009

Aedos e Rapsodos (4) - Cora Coralina



“Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.”


Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nascida em 20 de agosto de 1889 na cidade de Goiânia, foi uma das mais populares poetisas e contistas brasileiras. Coralina era uma mulher simples, doceira de profissão, que viveu na pequena cidadezinha chamada Goiás, sendo a responsável por uma obra poética rica em motivos cotidianos do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de sua cidade natal. Na introdução do seu livro “Vintém de Cobre”, é mostrado o papel preponderante que os poetas têm para com seus semelhantes. Eles são os aedos e rapsodos de nosso tempo, que só futuramente poderão ser melhor compreendidos.

“A cidade de Goiás, antiga Vila-Bôa de Goyas .......................................Encravada as margens do Rio Vermelho, num vale cercado por colinas, impossibilitada fisicamente de expandir-se, a cidade acabou por assumir um ar romântico imposto por contingências históricas e por força de sua situação geográfica.................

Este costume de os mais velhos contarem casos para as crianças, ao entardecer, é um fato psicológico que deve ser realçado como elemento provocador, por excelência, da imaginação criadora dos vilaboenses.

O “contar casos” se constitui numa tradição familiar de nossos ancestrais que Cora Coralina faz reviver em sua obra com toda a pujança de seu poder criador. Em seus poemas, encontramos o estilo oral desses “casos”, sem invencionices literárias gravadas com pretensões sofisticadas, mas com a aparente simplicidade que caracteriza a sua obra poética.

É em Vintém de Cobra, Meias Confissões de Aninha, que a poesia de Cora Coralina se realiza como o elo de permanência da tradição que vem dos tempos passados em busca da afirmação de uma brasilidade futura conforme palavras da própria autora: “ Geração ponte, eu fui, posso contar.”

Cora Coralina nasceu e foi criada às margens do rio Vermelho, num velho casarão do século XIX. Escreveu seus primeiros poemas aos quatorze anos de idade, tendo sido publicados somente em jornais da sua cidade. Sua escolaridade resumia-se nas primeiras quatro séries do então curso primário (ensino fundamental).

Ela casou-se em 1910 com o advogado Cantídio Tolentino Bretas, com quem se mudou, no ano seguinte, para o interior de São Paulo. Aí viveu com a família por quarenta e cinco anos. Segundo a poetisa, ao completar cinqüenta anos de idade, passou por intensa transformação interior, definida por ela posteriormente como "a perda do medo". Nesta época passou a usar o pseudônimo com o qual se tornou conhecida. Em 1956, ficando viúva, retornou para Goiás. Durante esses anos, Cora não deixou de escrever poemas relacionados com a sua história pessoal, com a cidade em que nasceu e com ambiente em que foi criada.

“O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher.”

“O saber se aprende com os mestres. A sabedoria, só com o corriqueiro da vida.”

“Não sei ...se a vida é curta ou longa demais para nós,

Mas sei que nada do que vivemos

Tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.”

Ela usou como fonte de inspiração os elementos folclóricos que faziam parte de seu cotidiano. Através de seus versos se fez conhecer em todo Brasil, servindo de exemplo e inspiração para tantos que conviveram com esta grande artista.

Cora Carolina morreu, na cidade de Goiânia, em 10 de abril de 1985. A sua casa na Cidade de Goiás foi transformada num museu em homenagem à sua história de vida e produção literária.

“Aninha e suas pedras

Não te deixes destruir...

Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha

um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

Toma a tua parte.

Vem a estas páginas

e não entraves seu uso aos que têm sede.”


Carta de Carlos Drummond de Andrade para Cora Coralina:

Rio de Janeiro, 7 de outubro, 1983.

Minha querida amiga Cora Coralina:

Seu “Vintém de Cobre” é, para mim, moeda de ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não se pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia (...).

Não lhe escrevi antes, agradecendo a dádiva, porque andei malacafento e me submeti a uma cirurgia. Mas agora, já recuperado, estou em condições de dizer, com alegria justa: Obrigado, minha amiga! Obrigado, também pelas lindas, tocantes palavras que escreveu para mim e que guardarei na memória do coração.

O beijo e o carinho do seu

Drummond

Aedos e Rapsodos (3) - Cecília Meireles


Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu em 7 de novembro de 1901, no bairro da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. Devido ao falecimento prematuro de seus pais foi criada por sua avó, D. Jacinta Garcia Benevides. Cecília Meireles escreveria mais tarde sobre este triste acontecimento tão marcante para sua infância e vida:

"Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno.”

(...) Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.

(...) Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano."

Em 1917, Cecília Meireles formou-se no Curso Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, tornando-se professora do curso primário. Dois anos depois, em 1919, publicou seu primeiro livro de poesias, "Espectro". Seguiram-se "Nunca mais... e Poema dos Poemas", em 1923, e "Baladas para El-Rei em 1925. Caracterizou-se como escritora habilidosa, possuindo grande fluência vocabular e riqueza de imagens reflexivas e filosóficas. Abordou temas como a transitoriedade da vida, o efêmero, o amor, o infinito e a natureza. De forte influência simbólica, fez uso de temas como os elementos (água, ar, terra e fogo), além de vento, mar, tempo e espaço para composição de suas poesias. Cecília teve uma brilhante carreira como poetisa, professora, pedagoga e jornalista. Foi casada duas vezes e teve três filhas.

“Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdidaa minha face?”

Em 1934 fundou a biblioteca Infantil do Rio de Janeiro e começou a ensinar Literatura Brasileira em Lisboa e Coimbra (Portugal). Em 1936, passou a lecionar Literatura Brasileira na recém fundada Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além da vitoriosa carreira como professora, continuou publicando inúmeros livros de poesia e prosa sobre temas pedagógicos, folclóricos e infantis.

“Atitude
Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.

Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.
E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.”

Cecília Meireles morreu no Rio de Janeiro em 9 de novembro de 1964. No ano seguinte, o Governo do então Estado da Guanabara a homenageou dando o nome de Sala Cecília Meireles a um grande salão de concertos e conferências do Largo da Lapa.

Sua poesia foi assim julgada pelo respeitadíssimo crítico Paulo Rónai:

"Considero o lirismo de Cecília Meireles o mais elevado da moderna poesia de língua portuguesa. Nenhum outro poeta iguala o seu desprendimento, a sua fluidez, o seu poder transfigurador, a sua simplicidade e seu preciosismo, porque Cecília, só ela, se acerca da nossa poesia primitiva e do nosso lirismo espontâneo... A poesia de Cecília Meireles é uma das mais puras, belas e válidas manifestações da literatura contemporânea.”

“Sonhei um sonho
E lembrei-me do sonho
E esqueci-me do sonho
E sonhei que procurava
Em sonho aquele sonho
E pergunto se a vida
Não é um sonho que
Procura um sonho.”

13 março 2009

Flertando com Jung




Os cursos de férias da Estácio de Sá, aqui no Rio, são sempre surpreendentes e muitas vezes agradáveis. Pessoas que abrem mão de uma praia ou algum passeio para refletir sobre A LINGUAGEM SECRETA DOS SONHOS ou INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA JUNGUIANA, disciplinas que tenho o prazer de ministrar, têm realmente alguma motivação interior muito especial.

Em janeiro de 2009, compareceu uma aluna sempre atenta e curiosa, estudante de Psicanálise e interessada em conhecer um pouco mais da Psicologia Junguiana (Analítica). Sua capacidade de apreensão e interesse logo sobressairam, além do importante aspecto de grande clareza das idéias e por apreciar o conhecimento aberto. Sim, a capacidade de questionamento e as interrogações eram por ela valorizadas, apreciando a percepção do conhecimento humano como um somatório de várias experiências pessoais, sem se fixar em dogmas ou nos limites do aprendizado.

Surpreendeu-me, após o curso, ver um artigo feito por ela, mostrando também sensibilidade e vontade de participar suas experiências no campo do conhecimento humano com outras pessoas.

Vamos logo a esse artigo que a autora teve a gentileza de liberar para publicação aqui neste blog:



FLERTANDO COM JUNG

Por Vanessa Souza, jornalista e estudante de Psicanálise Clínica.


Freud e Lacan que me perdoem. Confesso minha infidelidade. Nas últimas semanas eu andei flertando com Jung. Ainda não estou tomada de paixão, mas sinto, como Bogart em Casablanca, que esse é o começo de uma grande amizade.

Nas últimas semanas participei de uns cursinhos de férias de uma universidade carioca, 16 horas cada um. Quase um cursinho pré-vestibular sobre cada tema. O básico-do-básico-do-básico. Mesmo com toda a pressa, deu para “desconfiar” de muita coisa.


Introdução à Psicologia Junguiana foi um deles. Nem sei por quais motivos nunca havia estudado Jung. Depois da primeira aula, até descobri que tinha um pequeno volume, do tipo resumo-do-resumo, sobre as teorias dele. Logo no prefácio, o autor já avisa que Jung era o Lado B da psicanálise: confuso, bígamo e ex-discípulo de Freud.


Carl Gustav Jung nasceu em 1875, na Suíça – só para situar o leitor. Estudou medicina, tornou-se psiquiatra e em 1906 trocou a primeira carta com Freud – precursora de uma vasta correspondência. O primeiro encontro pessoal dos dois durou 13 horas. Eita cafezinho longo! A amizade não durou muito. Jung divergiu das idéias de Freud e, em 1913, Sigmund rompeu com o pupilo. Jung ficou anos deprimido por conta dessa cisão.


Uma das coisas que mais me chamou atenção na obra de Jung foram os arquétipos. Perdoem-me se eu for muito didática, mas meu conhecimento sobre o tema não me permite maiores termos-técnicos-que-mostram-que-o-autor-sabe-tudo. Arquétipo é tudo aquilo que é basilar para o ser humano, que é universal. Quando nascemos teremos todas as experiências básicas/arquetípicas que estão previstas, no mundo mental, biológico e os instintos. Os arquétipos são tijolinhos vazios, onde cada um coloca sua massa de experiências, sua tinta. O arquétipo é bipolar, tem seu lado bom e ruim. Como o arquétipo da mãe nutritiva e o da mãe devoradora – aquela que alimenta e aquela que sufoca. Quem não tem uma delas? Ou as duas, alternadamente.


Outro conceito de Jung que eu adorei é a sombra. Para Jung, a sombra é tudo aquilo que o indivíduo não queria ser. Ou seja, o que ele deseja jogar para baixo do tapete – “O complexo de sombra pode se compor tanto de conteúdos que nunca estiveram na consciência como daqueles que foram reprimidos por estarem em desacordo com a identidade construída pelo ego”.


Os tipos psicológicos, que eu já tinha ouvido tantos psicólogos falarem, só ficaram claros agora. São quatro as funções da consciência: sentimento (que confere diferentes valores às experiências), pensamento (que apreende os significados), sensação (a apreensão por meio dos sentidos) e a intuição (que capta as possibilidades futuras e o “clima” do ambiente). O pensamento e o sentimento são racionais, sensação e intuição, irracionais.


No fim das contas, resultam em oito os tipos psicológicos, pois cada uma das quatro funções da consciência podem ser extrovertidas ou introvertidas – as atitudes do eu. Resumidamente, no extrovertido a energia psíquica é voltada para o mundo dos objetos e acontecimentos exteriores, aos quais ela se liga e dos quais depende; já o introvertido é voltado para os objetos internos ou subjetivos, que determinam o comportamento.


Para concluir, o que ocorre é que uma das funções se desenvolve e serve como a principal forma de adaptação do indivíduo. Duas outras funcionam como funções auxiliares e a quarta fica pouco desenvolvida, tornando-se próxima do inconsciente. Agora eu entendo como alguém pode ser puro sentimento e ser capenga no pensamento. Ou qualquer variação sobre o tema.

10 março 2009

A Caverna (4). Lenda Carajá do Brasil.



OBS: É melhor que os artigos sobre o tema Caverna (1, 2, 3 e 4) sejam lidos nesta ordem.




É importante realçar alguns detalhes da lenda de origem dos Carajás. Inicialmente, a referência à caverna, remetendo-nos ao sentido feminino de útero gerador e também transformador, é visto desde os mitos milenares, inclusive de Platão. Trata-se da ressonância do que é universal e humano reverberando em toda parte e culturas diferenciadas, de forma a mostrar o que cada ser individual tem em comum com toda a humanidade.

O mundo das águas é considerado local de origem da vida, sendo o rio um manancial que busca a grande fonte e o seu destino: o misterioso mar. Os antigos Inan (Carajás) estavam em associação com esse mundo idílico de sonho e fantasia onde não havia sofrimento nem fome. As necessidades eram supridas naturalmente por uma proteção superior, não havia o menor trabalho. Bastava sentir fome que a comida estava logo disponível, sem necessidade de qualquer outra preocupação. No início tudo era assim: bondade e maravilha, em um estado de enorme dependência e cuidados que surgiam como bênçãos.

O barro lembra a matéria prima da vida, a argamassa a ser trabalhada, apresentando-se na forma maternal côncava de uma panela sempre disponível com a nutrição desejada. A divindade primordial cuidava de todos, mas assim o desenvolvimento individual não ocorria, o que se manifestava também no aspecto físico com a aglomeração de gorduras de forma generalizada entre os Inan.

Após algum tempo nesse estado de paralisia, era natural que surgisse certa inquietação. Há sempre um componente que percebe intuitivamente as possibilidades de mudanças. Afinal, “fora das águas” daquele mundo inconsciente parecia haver oportunidades para o novo e também acontecimentos mais subjetivos que estimulassem as escolhas individuais. Seria a possibilidade de obtenção de consciência?

Mas ninguém jamais retornara desse lugar! Parece ser assim um caminho sem volta, ou seja, certo desenvolvimento que não admite retrocesso. E curiosidade humana é assim: desperta devagar e toma conta. Só é possível contê-la na sua origem. E esse não foi o caso de Kboi ao ser contaminado pela criatividade e vontade de ser senhor do seu destino. A aventura o chamava e nada melhor do que prosseguir com um amigo cujas características completassem a si mesmo, pois se um era introvertido, o outro, U-ô-Ubedô conseguia espontânea extroversão e coragem exterior.

Esta complementaridade psicológica foi vista também no mito grego de Prometeu, que formava certa unidade com seu irmão Epimeteu. O primeiro pensava antes e agia depois, ao passo que Epimeteu partia logo para a ação (Pro + meteu = o que pensa antes, Epi = depois). Kboi pensou muito antes de agir, mas, ao chegar aonde o rio era mais fundo e a água mais escura, foi a ação do seu amigo, melhor preparado para as aventuras no mundo exterior, que se mostrou viável. Ele estava mais apto e equipado para ultrapassar a fenda que separava os dois mundos.

Sentir movimentar-se nas águas é uma situação nova e muito diferente que a estagnação sob as águas. Só assim foi possível chegar à terra firme, caminhar ereto e sentir a capacidade renovadora e refrescante do vento atingindo o corpo e a alma. A exploração desse novo cenário foi algo deslumbrante, mas os animais não surgiram nesse primeiro momento. Apenas a vegetação e a falta da panela de barro! A sensação de fome e dor, como enfrenta qualquer bebê, mostra o início do entendimento de que a situação realmente se modificara por completo e não apenas a paisagem externa.

O novo traz necessidade de adaptação e qualquer dificuldade nos leva a certa regressão da libido (energia psíquica) e para estados anteriores vividos. É o recuar para melhor saltar como possibilidade para viabilizar o futuro. A alternativa foi voltar até onde permanecia seu amigo, onde os dois vivenciaram a insegurança e a incerteza da nova situação.

Kboi tinha capacidade concreta e habilidades de movimentação no mundo interior e materno como origem da vida. Assim ele retorna ao seu núcleo central nas camadas mais profundas da sua psique para buscar inspiração e “pedir conselhos” da sua divindade Kanansiuê. Entretanto o herói percebe que o mundo físico e externo segue as suas próprias leis sem a ação direta do seu deus. Em termos psicológicos, o mundo da consciência tem a ação do eu (ego) que é o seu centro diretor para agir e fazer suas escolhas: aí os poderes “divinos” (do Si-mesmo ou Self) ficam limitados. Assim Kboi percebeu que o Grande Pai não poderia para proteger seus filhos no mundo fora do paraíso, ou seja, da consciência. Nesse mundo real e concreto cada um deveria assumir as responsabilidades por suas escolhas que fossem frutos do próprio conhecimento a ser adquirido.

Sentindo-se no caminho sem volta para a sua tomada de consciência, o jovem carajá mostrou obstinação e concentrou suas energias. Ele se fortaleceu com outros componentes da sua própria tribo, que o ajudou a encontrar seu amigo para então fundarem, no “barranco mais alto”, a primeira aldeia em terra firme.

A liberdade trouxe trabalho, riscos e necessidade de ampliação do conhecimento sobre a própria vida. Tornou-se necessário investigar o que era bom e o que era mau. Mas o deus Kanansiuê, como uma luz interior que se mantinha presente, não os abandonou, como pai verdadeiro nunca abandona seus filhos, trazendo-lhes a ajuda através do urubu-rei.

O auxílio simbólico de uma ave, mesmo que um abutre tão necessário ao equilíbrio da natureza, mostra a interferência de um ser ligado ao elemento ar. Mesmo com suas limitações, ele pareceu ser adequado para trazer capacidades de discriminação e diferenciação para a obtenção do conhecimento e garantia da possibilidade de vida. Função tipicamente do logos relacionado ao desenvolvimento do componente masculino.

Os aspectos femininos ficam mais bem demarcados na última variante da lenda apresentada. A escuridão, que predominava, estava relacionada com esse elemento, como também a própria terra a ofertar os alimentos na forma de frutos e raízes. Não havia ainda um raio de luz para clarear a consciência e trazer as possibilidades de aumentar a sabedoria no convívio com as novas situações. Como o jovem ainda não tinha o necessário discernimento, critério ou juízo de valor, alimentou-se com mandioca brava, o que comprometeu seriamente sua saúde.

O limitado aspecto masculino e rudimentar do conhecimento representado pelo urubu mostrava-se no modo de a ave se movimentar em passo desengonçado e saltitante. Entretanto, o menino já desenvolvera certas capacidades, o que ficou estabelecido na sua busca da composição com seu elemento feminino. Este surge na forma da menina com a qual se casou e a também na figura da mãe dessa jovem.

O objetivo era se livrar da escuridão que impregnava o mundo sem graça e sem vida, precisando de “enfeites” para ser ornamentado e também permitir a expansão da existência. As luzes das estrelas, da lua e do sol mostram a evolução das possibilidades de maior observação, análise, discernimento e conhecimento que podem ser proporcionadas pela consciência, cuja simbologia aponta exatamente para o sentido de luz. Onde se faz a luz é possível a formação da consciência.

Assim o ser humano, na medida das suas condições internas e externas, pode nascer e morrer, cumprindo a meta primordial da vida: a ampliação da consciência.


Ref.
ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil, histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, sem data.

04 março 2009

A Caverna (3). Lenda Carajá do Brasil, outra versão.


Obs: É melhor que os artigos A Caverna 1, 2, 3 e 4 sejam lidos na sequência.


Há outras versões da lenda sobre a origem dos antigos índios carajás. Essas estórias diferentes apenas fortalecem o conteúdo simbólico de todo o conjunto. Vale a pena apreciar e verificar como podem se complementar ou mesmo amplificar o conteúdo.

Esses povos indígenas vieram do Furo das Pedras, originando-se de um local debaixo d’água. Nesse mundo subterrâneo, a luz penetrava enquanto na superfície era noite. Eram então muito felizes e morriam de velhice só mesmo depois de terem cansado de viver. Certo dia um grupo resolveu sair de lá e passaram a habitar a terra. Entretanto um deles, por ser muito robusto, não conseguiu passar pelo furo da pedra, ficando ali entalado. Os que subiram trouxeram-lhe frutos, comidas e galhos secos de árvores. Ele se surpreendeu e alertou: “Vejam esses galhos secos das árvores, lá as coisas morrem! Não quero mais prosseguir. Voltem para nosso lugar onde viveremos para sempre.” Mas ninguém o ouviu e ele voltou para o fundo do buraco.

Os carajás que passaram pelo buraco tiveram que se acostumar com os períodos de escuridão e se alimentavam com raízes e frutos do mato que precisavam ir catar.

Em certa ocasião, um menino chegou, viu uma menina, achou-a bonita e com ela se casou... Depois ele mandou que ela fosse buscar frutos (ao mato), mas estava tudo escuro. A mãe da menina se aproximou, desejando ajudar, mas como estava escuro para colher frutos, machucou a mão nos espinhos. Nada podiam fazer por conta da penumbra, de modo que teriam de esperar que aparecesse pelo menos um raio de sol para clarear.

Aí a mãe resolveu mandar o menino buscar raízes. Com a escuridão, ele pegou a primeira raiz de mandioca que conseguiu achar e comeu. Mas era mandioca brava, o que o levou a passar mal, ficando deitado de costas.

Logo chegou um urubu, vindo com o seu passo desengonçado, dizendo para os outros: - “Ele não está morto, ainda se move.” O menino continuava deitado de costas, com os olhos piscando. Chegaram mais urubus voando ou saltitando pelo chão para beliscar e bicar o garoto.

Enquanto isso, um caracará muito cuidadoso ficou voando em redor, observando. Chegou mais perto do menino e gritou para os urubus: - “Cuidado, ele está vivo!” Os urubus em coro responderam: - “Ele está morto!” E a discussão virou a maior confusão: - “Ele está morto! Ele está vivo!” Para acabar com aquela bagunça, o carcará foi buscar o urubu-rei, que atestou estar vivo o menino.

O caracará resolveu buscar o avô do urubu-rei, de bico vermelho e o cabelo ralo, que chegou e disse: - “Ele está morto!” E rapidamente pousou sobre a barriga do menino. Então ouviu-se um estalo... O menino pegou o urubu-rei com as mãos. Ele se debateu, esperneou, quis fugir, mas estava seguro. Então o menino disse ao urubu-rei: - “Quero enfeites!” E o urubu-rei respondeu: - “Vou trazer!” E trouxe as estrelas do céu. O menino não gostou porque continuava escuro: - “Quero outro enfeite!” O urubu trouxe a lua. E o menino respondeu: - “Também não serve, ainda está escuro!” Então o urubu-rei trouxe o sol. E o menino ficou contente porque tudo ficou claro. Era o dia.
A mãe se aproximou do urubu-rei, que passou a ensinar-lhe a utilidade de todas as coisas. Então o menino soltou o urubu-rei. Nisso a mãe lembrou-se de perguntar qual era o segredo da eterna juventude. O urubu respondeu, mas infelizmente ele estava tão alto que muitos ouviram a resposta: as árvores, os peixes, os animais. Infelizmente, pela altura em que ele voava, a mãe e o menino não conseguiram ouvir o que o urubu disse naquele momento.
É por isso que envelhecemos e morremos.

Assim se encerra a lenda. Certamente muitas crianças atuais gostariam de ouvir estórias assim: por que não contar para elas? E os adultos são levados à profunda reflexão sobre o sentido de todas essas coisas.

Estas são aventuras e acontecimentos fantásticos transmitidos pela tradição carajá. Podemos perceber a estrutura básica dos mitos consagrados desde a antiguidade, tratando-se, como eles, de narrativas cosmogônicas (origem da ordem e do mundo) ou de ampliação da consciência. Esses são os aspectos basilares dos mitos, mostrando a formação do cosmos, que equivale na Psicologia Junguiana à formação da consciência.

A noção geral de caos remete à noção de confusão geral dos elementos antes da formação do mundo, onde imperava certa desordem. É dessa indiferenciação inicial que lentamente se estabelece certa ordem, arranjo e estruturação. As coisas e seres parecem ter melhor definidos os seus lugares, podendo estabelecer sua existência individual. Os seres humanos passam a ter noção da sua consciência individual e coletiva, ainda que nos primeiros e primitivos estágios tudo ainda fosse percebido com certo grau de confusão e indiferenciação.

Olhando para os dias atuais, antes de o bebê desenvolver os primeiros sinais da sua percepção ou da sua consciência, há de se observar que o mundo já estava ali com todos os atores e cenários próximos: mãe, pai, avós, tios, casa, aparelho de tv, videogame e tudo o mais. A formação da consciência é um ato criador do mundo no sentido de visão e experienciação com esse mundo. Passará toda a existência e certamente o novo ser não conseguirá tomar conhecimento de todos os detalhes e potencialidades do mundo em que vive.

Os passos da sua evolução são muito lentos, meses se transcorrem até o bebê estabelecer a sua incipiente noção de identidade. No início, é tudo muito misturado e indiferenciado, pois ele próprio, a mãe e o mundo se confundem, estando amalgamados e anelados. É como se o mundo fosse sendo criado progressivamente. Assim, cada início ou ampliação da consciência corresponde a um ato de criação do mundo que assim vai sendo descoberto.

A formação da consciência individual caminha na mesma proporção da consciência coletiva de uma sociedade, povo ou nação. Afinal o que o grupo conhece do mundo é o que pode ser passado para os bebês das novas gerações. Cada ser humano que nasce traz suas capacidades humanas, tanto corporais como psíquicas. Cabe desenvolvê-las no seu meio e nas relações pessoais e culturais, pois sem essa troca qualquer processo de desenvolvimento permanecerá estagnado em algum ponto.

(continua)


Ref.
ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil, histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, sem data.

28 fevereiro 2009

A Caverna (2). Lenda Carajá do Brasil.


OBS: É melhor que os artigos sobre "A Caverna" sejam lidos na sequência 1, 2, 3 e 4.


A continuação do artigo anterior diz respeito à universalidade do tema “caverna”, mostrando que além do mito de Platão temos em povos nativos no Brasil similaridades e potencialidades no interior e no exterior da caverna mitológica. É a forte ligação humana do inconsciente coletivo. Vamos então fazer essas conexões com um exemplo muito prático e brasileiro:

Contam histórias muito antigas e estranhas dos povos indígenas Carajás, que habitaram há muito, muito tempo mesmo, a região da ilha do Bananal (a maior ilha fluvial do mundo). O rio Araguaia se duplica para contornar essa magnífica ilha situada entre os estados de Goiás e Mato Grosso do Norte.

Os índios Carajás moravam no fundo desse rio, que em língua tupi significa rio das araras. Só Kanansiuê, o seu deus, seria capaz de explicar como eles passaram a morar no fundo desse rio misterioso. Nessa aldeia todos viviam com muita paz, nada faltava ou incomodava. Mesmo a alimentação não dava qualquer trabalho, pois quando a fome começava a chegar havia uma panela de barro para cada um, sempre cheia de comida. A panela se enchia novamente sempre que alguém a esvaziava. Não dava o menor trabalho, era uma dádiva da ação e bondade infinitas de Kanansiuê.

Com esse abençoado e protegido tipo de vida, eram todos muito gordos, principalmente as mulheres. Não havia sofrimento, doenças ou dor de qualquer espécie. Assim, no fundo do rio, ninguém morria: era somente nascer, crescer, engordar, e reproduzir-se à vontade. O invisível pai Kanansiuê estava sempre presente cuidando de todos os Inan, como eles se chamavam entre si.

A vida na aldeia começou a ficar sem graça e monótona, apesar de ninguém ter motivo para ficar insatisfeito. Os mais jovens ficavam a maior parte do tempo sentados em volta de um índio mais velho, que contava as estórias da tribo; em todas elas, Kanansiuê era exaltado pelos seus feitos benevolentes.

Apesar de nada faltar para viver tranquilamente, um dia o índio chamado Kboi começou a mostrar sinais de inquietação. Ele tinha ouvido falar que fora das águas, além das margens do grande rio das araras, havia outras formas de vida, um mundo completamente diferente daquele que todos conheciam. Assim ele soube a respeito de animais estranhos e de uma vegetação abundante com a qual os Inan não estavam acostumados ali embaixo do rio.

A curiosidade de Kboi foi aumentando de mansinho, despertando o desejo de conhecer esse mundo novo e imaginário. As descrições fabulosas a respeito dessa estranha realidade eram encantadoras, mas ninguém retornara desse lugar. Mesmo assim ele foi ficando cada vez mais inquieto e curioso, chegando a chamar a atenção dos mais velhos que tentaram persuadi-lo contra qualquer aventura. As coisas são como são, disse-lhe uma vez um índio mais velho. Para que sair ou ir embora? Ele não tinha tudo o que precisava no fundo do rio? Kanansiuê não era amigo de todos? Para que se preocupar com o tempo se ele não tinha qualquer utilidade?

Nem mesmo Kboi sabia responder a essas perguntas, mas sentia crescer a sua curiosidade com uma força irresistível. Ele procurou o amigo chamado U-ô-Ubedô, dividindo suas inquietações, certo mal estar, além de ousados planos para praticarem uma aventura. O amigo relutou um pouco, mas terminou concordando em acompanhá-lo. “E se nós dois morrermos?” Perguntou-lhe, tendo como resposta: “Eu não sei... Você não está cansado desta vida de nunca morrer... de nunca acontecer nada?”

Os dois amigos decidiram procurar a saída que dava acesso à superfície do rio. Tinham ouvido falar de um buraco para chegar à tona, o ruê Bêérokan, que conseguiram encontrar depois de prolongada busca e cansativa caminhada. Perceberam que o orifício estava localizado justamente no local onde o rio era mais fundo e a água mais escura.

Dizem que, ao amanhecer, chegaram nesta pequena passagem e Kboi foi o primeiro a subir, tentando atingir o novo mundo. Ele pôs a cabeça para fora, olhou em redor, viu as margens, as grandes árvores de copas frondosas, mas algumas estavam caídas. Procurou em vão sinais de vida, não aparecendo qualquer dos fantásticos animais de que lhe falaram. O que estaria acontecendo? Seriam verdadeiros os relatos que ouvira? Ou seria Kanansiuê que afastou os animais para desanimar os amigos?

Kboi ficou intrigado com aquela situação. Tentou sair de uma vez para a superfície, mas era muito gordo e a sua barriga não permitiu, mesmo forçando o corpo na passagem. Ficou entalado: meio do lado de fora e metade para dentro, tendo que ser ajudado por U-ô-Ubedô para retornar. Seu amigo, um pouquinho menos gordo, experimentou a passagem, ajeitou-se e conseguiu. De pronto, viu-se nadando sobre as águas, o que era para ele uma sensação absolutamente nova e inusitada. Entusiasmado com o sucesso, dirigiu-se para uma das margens, pisou em terra firme e viu-se caminhando sobre os próprios pés com o ar batendo no corpo.

O jovem índio Inan (como os Carajás se chamavam) ficou deslumbrado com o que via. Como Kboi, não encontrou qualquer vestígio de animais diferentes. Depois de andar por algum tempo, sentiu fome e percebeu a panela de comida bem ao seu lado. Alimentou-se fartamente, como de hábito, e prosseguiu explorando aquele mundo novo e enigmático. Tudo atraia sua atenção, cada árvore, arbusto e toda a vegetação. Mais tarde, ele sentiu fome novamente, mas para sua surpresa a panela de barro não estava lá. A princípio não deu maior importância ao fato, mas a fome foi aumentando. Ele achou muito estranha aquela nova sensação com o estômago vazio, pois era algo que para ele poderia ser dor. Resolveu voltar.

Kboi o aguardava ansioso para ouvir os detalhes da sua exploração. O amigo então contou tudo o que viu, mas estava fortemente impressionado com a ausência da panela de comida. Pediu ao amigo que lhe trouxesse algo para comer, pois aquela sensação estava se tornando insuportável; ele não sabia que era assim tão ruim.

U-ô-Ubedô tentou voltar pelo buraco, mas para sua surpresa não conseguiu o seu intento. Isso era estranho e preocupante, pois a abertura permanecia a mesma. Não dava para entender por que a passagem só poderia ser feita de dentro para fora, sem conseguir retornar para dentro. Os dois ficaram atordoados e começaram a acreditar nas estórias dos mais velhos: não haveria volta para quem fosse à superfície.

Sem saber o que fazer, Kaboi, que ficara do lado de dentro, decidiu voltar à aldeia no fundo do rio para pedir conselhos aos anciãos. Rogou-lhes que intercedessem junto a Kanansiuê. Eles o fizeram a contragosto. O deus, já irritado, concordou em deixá-los partir, alertando que fora das águas os seus próprios poderes eram muito limitados.

Kboi era mesmo um obstinado, estava decidido a correr todos os riscos. E começou a fazer um rigoroso regime de emagrecimento enquanto tentava influenciar outros índios a arriscarem a vida do lado de fora das águas. Conseguiu convencer um grupo que o seguiu ao encontro do amigo que já estava impaciente do lado de fora. Atingiram a superfície e nadaram até a margem do rio, caminhando até encontrar um barranco mais alto. Escolheram essa posição para formar a primeira aldeia em terra firme.

Entretanto a vida era muito difícil, logo eles tiveram que aprender a pescar e a caçar, precisavam saber quais as plantas serviam para a sua alimentação e quais eram venenosas. Não tinham noção de como construir uma cabana, ficando, durante muito tempo, sofrendo expostos às intempéries. Eles não conseguiam adivinhar o que era bom e o que era mau. No fundo do rio, era tudo igual, ninguém precisava saber dessas coisas. Logo alguns índios começaram a adoecer e a morrer. Quando o desespero chegou a um ponto crítico, Kanansiuê apareceu-lhes na forma de um índio alto e forte, dizendo: “ – Permiti que vocês saíssem por causa do desejo de vocês e nem mesmo um deus deverá matar nos homens os seus anseios de liberdade. Mas isso me doeu muito, pois lá, no fundo das águas, eu lhes dava tudo e vocês recusaram as minhas dádivas”.

Mesmo magoado, Kanansiuê decidiu ajudá-los, saindo em busca do urubu-rei, conseguindo atraí-lo e aprisioná-lo, obrigando-o a passar um dia na terra, entre os Inan, ensinando-lhes tudo o que precisassem para conseguir sobreviver fora das águas.


Ref.
PERET, João Américo. Mitos e Lendas Karajá. Rio de Janeiro: Peret, 1979.


24 fevereiro 2009

A Caverna (1). Platão.




Obs: 1) O último artigo (Nise da Silveira) sofreu pequenas correções e já está no blog.

2) Agora teremos uma sequência de 4 artigos sobre o tema da caverna. O próximo não deverá ser enviado por email, ficando disponível no blog. Bom proveito!


Vamos ao primeiro deles:


Esse tema é realmente marcante para muitos povos e culturas. Em nosso país, percebemos nas diversas regiões como as pessoas ficam tocadas e sensibilizadas ao apreciar a magia que reina no interior de uma caverna, despertando a liberação plena da imaginação e da fantasia.

No interior de Minas, a religiosidade faz as estreitas ligações com o assunto, despertando as questões mais íntimas. Muito além do turismo, as pessoas locais ligam-se com muita energia às reminiscências trazidas pela Gruta de Maquiné (Cordisburgo-MG) e na Casa de Pedra em São João del Rei (MG) , por exemplo. As ligações e associações são profundas, começando pelo nascimento de Jesus numa gruta, assim como também foi em local parecido que seu corpo permaneceu, após o calvário, até a Ressurreição. Pelo seu formato, lembram também as capelinhas, os oratórios e santuários – símbolos próprios para certa reflexão e contato interior.

As comemorações natalinas são marcantes no interior do país. Em Minas, os filhos são estimulados pelos pais a participar da montagem dos presépios onde a gruta aparece de forma predominante, enfeitada acima com malacacheta ou mica (grupo de minerais que se separam facilmente em folhas muito finas), musgos, pedras e outros produtos encontrados na natureza. Após a montagem final, todos ficam admirados e agradecidos por verem aqueles componentes básicos formarem um conjunto tão harmonioso e sagrado, estimulando a espiritualidade e a fé.

Em muitas culturas a caverna aparece como local apropriado para o nascimento e o renascimento, considerado como receptáculo de energia telúrica (associada à Terra). Por estar normalmente incrustada em elevação ou área montanhosa, esse conjunto desperta a associação com o local propício aos deuses em muitos povos. Muitas nações indígenas consideram as montanhas como local sagrado que nem mesmo deve ser freqüentado. Como exemplo no Brasil, os ianomâmis estimulavam a ida de garimpeiros nas altitudes do Pico da Neblina, pois eles mesmos não freqüentavam essa área montanhosa. Na Grécia antiga, a organização divina feita por Zeus tinha como base o monte Olimpo.

A caverna também está relacionada ao sentido de chegada e de partida, entrada e saída da vida, lembrando a importância do útero materno e do acolhimento necessário para as transformações. A Grande Mãe participa com seu princípio gerador e nutridor, propiciando também os incentivos para o crescimento; desse princípio sai a vida que também a ele retorna após cumprir a sua jornada.

O apelo torna-se cada vez mais potente à medida que avançamos nos esclarecimentos, de forma a mostrar a sua importância universal. Como um retorno à origem, a caverna também é um local de regeneração. Entrar nesse ambiente pode significar uma volta ao início, podendo então “subir ao céu”, ultrapassar o cosmo da própria consciência. A caverna se apresenta como um local de passagem tanto da terra para o céu como o caminho inverso (no sonho bíblico de Jacó anjos subiam e desciam pela escada que ligava ao céu).

No interior da caverna existem os perigos do desconhecido, pois é uma região sombria e subterrânea de limites invisíveis, lembrando um temível abismo de onde podem surgir os monstros. Aqui encontramos os dois aspectos – positivo e negativo – de todo grande símbolo, e o paralelo inevitável do mundo do inconsciente, de onde viemos (eu – ego) e para onde retornaremos. Essa volta já é sinalizada em cada noite quando, ao dormir, fazemos esta passagem transitória pelo mundo do inconsciente.

Há lendas a respeito de cavernas entre muitos povos indígenas. Em regiões do Oriente este tema é também reincidente. Na Grécia ele ganha um realce especial, já nos lembrando Chevalier (*) que: “Toda a tradição grega une estreitamente o simbolismo metafísico e o simbolismo moral: a construção de um eu harmonioso faz-se à imagem de um cosmo harmonioso. A organização do eu interior e sua relação com o mundo exterior é concomitante.” Os gregos desenvolviam uma impressionante noção de conjunto e de totalidade, uma visão do organismo pessoal, social e espiritual. Tudo muito aproximado e participante da plena vida.

O filósofo Platão (A República, livro VII) que, há quase 2.500 anos, nos brinda com o seu famoso Mito da Caverna. A narrativa mostra que homens estão, desde a sua infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço de modo a não poderem movimentar nem mesmo a cabeça, permanecendo de costas para a entrada da caverna. Estão assim imobilizados e com o campo visual limitado, somente percebendo as sombras nas paredes internas projetadas pela luz de uma fogueira que arde atrás deles.

A caverna é assim a imagem do mundo, mostrando a situação extremamente limitada do homem na Terra. “A luz indireta que ilumina suas paredes provém de um sol invisível; mas indica o caminho que a alma deve seguir a fim de encontrar o bem e a verdade: a subida para o alto e a contemplação daquilo que existe no alto representam o caminho da alma para elevar-se em direção ao lugar inteligível. Em Platão, o simbolismo da caverna implica portanto uma significação não apenas cósmica, mas também ética e moral. A caverna e seus espetáculos de sombras ou de fantoches representam esse mundo de aparências agitadas, do qual a alma deve sair para contemplar o verdadeiro mundo das realidades – o mundo das idéias”.
Os prisioneiros percebiam como sua única realidade as sombras projetadas nas paredes: deles próprios, dos outros homens acorrentados e também daqueles que, nas suas costas, mantinham a fogueira acesa. Com estes eles não tinham contato visual direto, e nem podiam imaginar que o Sol lá fora inundava a Terra com sua estonteante luminosidade. Um dos prisioneiros decide abandonar essa condição e fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões. Aos poucos vai se movendo e avança na direção de um muro e o escala; com dificuldade enfrenta os obstáculos que encontra e sai da caverna. Em liberdade, descobre não apenas que as sombras eram feitas por homens como ele, mas também que provinham de todo o mundo de natureza até então desconhecida. Encanta-se com coisas nunca vistas e com o esplendor do Sol. A adaptação nesse outro mundo precisa ser gradual, pois a luminosidade e as possibilidades de ampliação do conhecimento são impressionantes. Nesse contexto, surge a indagação crucial: e se este homem retornasse para contar aos seus companheiros tudo o que descobrira, como seria interpretado? Um mentiroso ou alguém dominado pela fantasia?

Provavelmente Platão se referia indiretamente aos seus contemporâneos com suas crenças e superstições. Ele fugia das amarras comuns que prendem o homem e partia para uma compreensão mais ampla do mundo. Segundo a metáfora, “o processo para a obtenção da consciência abrange dois domínios: o domínio das coisas sensíveis (eikasia e pístis) e o domínio das idéias (diánoia e nóesis). Para o filósofo, a realidade está no mundo das idéias e a maioria da humanidade vive na condição da ignorância, no mundo ilusório das coisas sensíveis, no grau da apreensão de imagens (eikasia), as quais são imutáveis, não são funcionais e, por isso, não são objetos de conhecimento”.

Mesmo o empirista mais dedicado sabe que não pode perceber, apreender ou compreender a totalidade dos fatos e do mundo concreto. Para conhecer melhor a realidade certamente é preciso percebermos melhor os objetos e o cenário do mundo exterior. Mas, nessa compreensão, terão enorme influência o modo como funcionamos no nosso interior, ou seja, como estamos captando esses sinais e imagens, pois estarão influenciando nessa apercepção nossos pensamentos, fantasias, inclinações, imagens, intuições e inspirações.

Ter a noção das limitação pessoais certamente é um início da longa caminhada no “processo de individuação” e crescimento pessoal. O forte simbolismo da caverna mostra as possibilidades de uma constante gestação de seres com maior ampliação da sua própria consciência. Parece ser essa a meta da vida, como podemos perceber nas diferentes culturas.


Ref.
* CHEVALIER, Jean e Gheerbrant A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

19 fevereiro 2009

Nise da Silveira - Lidar com o diferente


OBS: O último artigo (Tempo 2) não foi enviado por email e está disponível aqui no blog. É importante ler na ordem correta e comparar as imagens do relógio simbolizando o tempo. Como cada um de nós está percebendo o relógio de nossas vidas? Podemos dizer que vários amigos que "correm contra o tempo" nos motivaram, mesmo sem saber, a escrever esses artigos. As notícias são sempre atualizadas no blog.

Vamos ao artigo de hoje:

"Felizmente, eu nunca convivi com gente muito ajuizada." (Nise)

A menina Nise nasceu em Maceió, Alagoas, em 15 de fevereiro de 1906, formando-se médica na Faculdade de Medicina da Bahia em 1926. Nise foi a única mulher entre os 156 homens de sua turma, destacando-se como uma das primeiras mulheres no Brasil a se formar em Medicina. Casou-se com o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira, colega de turma na faculdade, com quem conviveu até 1986, quando ele faleceu. Tendo se especializado em Psiquiatria, apontou as relações entre pobreza, desigualdade social, escassez da promoção de saúde e falta da prevenção da doença como as principais causas das patologias psiquiátricas no Brasil. Aprovada num concurso público, em 1933, começou a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha. Durante a Intentona Comunista foi presa e afastada do Serviço Público de 1936 a 1944.

Após ser anistiada, criou, em 1946, a Seção de Terapêutica Ocupacional no Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, posteriormente conhecido como Centro Psiquiátrico Pedro II. Neste momento, começou sua luta contra os agressivos métodos terapêuticos aplicados aos internos psiquiátricos, recusando-se a aplicar eletrochoques, insulinaterapia e lobotomia. A diretoria da instituição a transferiu para o setor de terapia ocupacional como meio de punição. Até aquela data, as terapias ocupacionais aplicadas eram faxina e limpeza dos aposentos hospitalares. Nise da Silveira se recusou a tratar internos desta forma e implantou ateliês de pintura e modelagem para que os pacientes pudessem expressar sua realidade simbólica pela arte e criatividade.

Nise assim definia o que esperava com as novas atividades dos internos: “O atelier de pintura me fez compreender que a principal função das atividades na terapêutica ocupacional seria criar oportunidades para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores encontrassem formas de expressão.”

Em 1949, participou com o trabalho de nove internos na exposição do MAM de São Paulo, intitulada ‘Nove artistas do Engenho de Dentro’. No ano seguinte contribuiu com inúmeras obras dos internos no I Congresso de Psiquiatria em Paris. Segundo Nise as criações artísticas eram expressões espontâneas dos pacientes: “Eu os via pintar. Via suas faces crispadas, via o ímpeto que movia suas mãos. A impressão que eu tinha era estarem eles vivenciando estados do ser inumeráveis e cada vez mais perigosos.”

Leitora e admiradora dos livros de Carl Jung e da Psicologia Analítica, Nise dedicou-se a lutar pela implantação de novos tratamentos para os doentes psiquiátricos que buscassem um maior e mais eficiente diálogo através da arte. Mais do que apenas buscar a terapia ocupacional, ela ansiava pela ‘emoção de lidar’, expressão usada por um de seus pacientes. Assim, em 1952, a partir do seu trabalho, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, um centro de estudo e de pesquisa reunindo obras produzidas nos ateliês de pintura e modelagem da instituição Psiquiátrica Pedro II.

No início da década de 50, Nise criou a Casa das Palmeiras, instituição que visava a ser uma ponte entre o Hospital psiquiátrico e a sociedade civil. Era a semente do que hoje conhecemos como Hospital Dia (implantado após grande movimento internacional da anti-psiquiatria já no final do século XX). Na Casa das Palmeiras, durante as tardes, os pacientes participavam de terapia ocupacional constituída de várias atividades. Os doentes que possuíam acompanhamento externo continuavam a medicação e os que não tinham eram medicados por psiquiatras voluntários que lá trabalhavam. A Casa das Palmeiras foi um dos símbolos do movimento da psiquiatria social no Brasil e em nada fica devendo ao movimento anti-psiquiatria do pós-guerra na Europa e Estados Unidos.

Em 1954, constatando a repetição de círculos nas pinturas de esquizofrênicos, ela escreveu ao eminente psiquiatra de Zurique, Carl Gustav Jung, relatando o fato. Sua carta foi prontamente respondida e recebeu o convite para apresentar os trabalhos dos doentes no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique (1957). A exposição A Arte e a Esquizofrenia contou com a presença, aprovação e aplauso de Jung, estudioso psiquiatra que dedicou sua vida defendendo a linguagem simbólica do inconsciente coletivo.

Da manifestação criativa e espontânea de seus pacientes, Nise da Silveira pôde continuar buscando uma maneira de comunicar-se com os esquizofrênicos. Segundo ela: “A palavra sânscrita mandala significa círculo, no sentido ordinário dessa palavra. Na esfera das práticas religiosas e em psicologia refere-se a imagens circulares que são desenhadas, pintadas, modeladas e dançadas. Como fenômeno psicológico aparece espontaneamente em sonhos, em certas situações de conflito e em casos de esquizofrenia. Freqüentemente contém uma quaternidade, ou múltiplo de quatro sob a forma de cruz, estrela, quadrado ou octógono etc. Sua ocorrência espontânea na produção de indivíduos contemporâneos permite à pesquisa psicológica fazer investigações sobre sua significação funcional. Em regra, a mandala ocorre em situações de dissociação ou desorientação psíquica. Esquizo, no grego quer dizer separado, partido, mas volta e meia apareciam círculos nos desenhos. Então, como sou atrevida, escrevi para Jung, perguntando se eram mandalas os círculos que os doentes pintavam. Levei um grande susto de felicidade quando recebi uma carta da secretária de Jung dizendo que o professor agradecia muito as mandalas. A partir daí comecei a trabalhar com os conceitos de Jung”.

A partir dos contatos em Zurique com Carl Jung e Marie Louise Von-Franz, Nise introduziu e divulgou a psicologia junguiana no Brasil através de seus conceitos e inovadoras maneiras de tratamento do doente psiquiátrico. Ela iniciou o Grupo de Estudos C. G. Jung com o objetivo de estudar, propagar e utilizar os conceitos da Psicologia Analítica. O grupo promoveu seminários, publicação da revista ‘Quatérnio’ e pesquisas na área que deram origem a exposições, documentários, simpósios, publicações, conferências e cursos sobre terapêutica ocupacional, com destaque para a importância das imagens.

Nise foi ainda pioneira na pesquisa das relações afetivas entre pacientes e animais, aos quais chamava de co-terapeutas. Percebeu que seus pacientes, ao cuidarem de um animal abandonado, criavam laços afetivos estáveis que auxiliavam na reabilitação. Ela escreveu sobre esse processo em seu livro "Gatos A Emoção de Lidar", publicado em 1998. Em todos os seus campos de atuação (Casa das Palmeira, Museu do Inconsciete, Grupos de Estudos) a presença dos co-terapeutas era certa. Os cães e gatos ajudavam na terapia e no ambiente de trabalho de maneira a fornecer o equilíbrio de forças e tendências inconscientes. A relação entre pessoas e animais é essencialmente não verbal, e era por esta via que ela procurava captar as dificuldades de seus pacientes e mobilizar a partir daí as primeiras manifestações de cura.

Nise da Silveira continuou buscando a metalinguagem (além da linguagem) utilizada pelos esquizofrênicos em suas pinturas, opondo-se aos psicanalistas que afirmavam não haver transferência na esquizofrenia. Isso porque, segundo eles, o embotamento e distanciamento afetivo do doente não permitiam tal ligação. Nise não concordava com essa argumentação e insistia que o esquizofrênico busca uma maneira de criar uma ponte afetiva com o mundo através de suas pinturas e na relação com os animais. Para ela, a Psiquiatria deveria se familiarizar com a metalinguagem do esquizofrênico a fim de entender o significado dos seus símbolos.

A teoria de Nise da Silveira sobre a terapia ocupacional era centrada na idéia de que se tratava de uma psicoterapia não verbal, podendo ser expressa com uma linguagem mais arcaica, universal e coletiva. A base teórica de sua argumentação era a Psicologia Analítica de Carl Jung. Nesse sentido, dizia Nise: “É, sobretudo, na psicologia junguiana que se pode encontrar base sólida para a compreensão da terapêutica ocupacional como psicoterapia de nível não verbal. A psique é na sua origem, diz Jung, uma função do sistema nervoso difundida em todo o corpo e cujo centro, filogeneticamente, não se achava na cabeça, porém no ventre, nas suas massas ganglionares. O plexo solar, no conceito de Jung, seria a primeira localização psíquica [...] se o plexo solar e o plexo cardíaco são centros psíquicos rudimentares, poder-se-á admitir que no curso da primeira infância traços mnêmicos de forte carga afetiva aí se acumulem. Será difícil, através do instrumento verbal, mobilizar esses afetos tão profundamente depositados e traze-los à consciência. O mais simples e o mais eficaz será o declive que a espécie humana sulcou durante milênios para exprimi-los: a dança, as representações mímicas, a pintura, a escultura, a música. O contato, a comunicação com o psicótico terá um mínimo de probabilidade de efetivar-se se pretendermos iniciá-las no nível verbal das nossas habituais relações entre pessoas. Isso só ocorrerá quando o processo de cura já se achar bastante adiantado. O médico que deseje comunicar-se e compreender o seu doente terá de partir do nível não verbal. É aí que se insere a ocupação terapêutica.”

Nise da Silveira faleceu em 30 de outubro de 1999, na cidade do Rio de Janeiro, depois de praticamente um século dedicado a seus pacientes e seguidores. Para a médica, pensadora e realizadora, “sob o impacto de afetos intensos, o inconsciente se reativa em proporções extraordinárias ameaçando submergir o ego consciente. Mas tão grande regressão ameaçando a preservação da vida provoca impulsos compensatórios que partem do próprio inconsciente, impulsos que impelem a titubeante consciência para a luz. O inconsciente é o ventre escuro que aconchega, mas também todo ventre tende a parir. A consciência nasce do inconsciente."

Em reconhecimento por seu importante trabalho, Nise da Silveira recebeu condecorações, títulos e prêmios em diferentes áreas do conhecimento: saúde, educação, arte e literatura. Foi membro fundador da Sociedade Internacional de Psicopatologia da Expressão, com sede em Paris. Seu trabalho e principalmente o exemplo de seus princípios inspiraram a criação de Museus, Centros Culturais e Instituições Psiquiátricas no Brasil e no exterior. O brilhante poeta Carlos Drummond de Andrade destaca: "Sem pretensão de formar criadores no sentido que lhes atribui a disciplina estética. Sem querer aumentar o catálogo de nossos pintores, escultores, gravadores. Nise interroga o inconsciente e consegue que dele aflorem as representações artísticas espontâneas, prova de que nem tudo em seus autores é caos ou aniquilamento. Perduram condições geradoras de uma atividade bela, a serem devidamente estudadas visando ao benefício do homem futuro, tornando-o mais transparente em suas grutas interiores.”

Site recomendado: http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/






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14 fevereiro 2009

O Fator Tempo (2)



Depois de um passeio pela importância do tempo englobando vários segmentos da vida das pessoas, atingindo o reinado de importância em trabalho, família, lazer, artes e amizade – nada mais prazeroso e refrescante do que verificar o assunto também com o auxílio da mitologia.

O poema babilônio Enuma Elisch é um importante documentário sobre a origem do mundo, tal como entendia a antiga população dessa cidade situada na Mesopotâmia, atual Iraque, podendo expressar as idéias dos antigos sumeros. A cidade foi fundada por volta de 2350 a.C. (a guerra de Tróia, marco mítico importante no mundo grego, somente ocorreu em 1200 a.C aproximadamente.).

Segundo a narrativa, nas origens da vida existia um caos aquoso de duas entidades – uma masculina e outra feminina. Era o velho Apsu como um oceano primordial e Tiamat, a personificação do mar. Ela simbolizava o caos primário, ou o profundo e deu à luz os primeiros deuses cósmicos: Espaço, Tempo, Céu e Terra. Estes deuses começam a mover-se por conta própria, passam a cantar e a fazer barulho. Essa movimentação e ruído perturbam o adormecido Apsu o que leva Tiamat a resolver matar os deuses que perturbavam seu marido.

Ocorre que os deuses resolveram se defender. Marduck, o magnífico filho de Ea (deus da Sabedoria), é escolhido como líder para enfrentar as forças hostis. Tiamat deu à luz um exército inteiro de monstros chefiados por Kingu, que ela escolhe como seu marido.

Marduck solta os quatro ventos contra Tiamat, cercando-a por todos os lados. Assim ela é capturada com uma rede. Marduck usa uma espada e a desmembra, resultando desse corpo despedaçado as partes da Terra, isto é, as montanhas, os rios, etc. Mas Tiamat é imortal por ser uma deusa e os monstros do caos escapam da punição. Apenas Kingu é morto e, com seu sangue, Marduck cria a raça humana.

A partir desse ponto, o homem tem que sofrer a tensão entre caos e cosmos e a culpa resultante de seu conflito para que os deuses possam ficar em paz. E ainda se fez necessário que o homem presenteasse os deuses com oferendas de incenso e comida para sustentá-los.

Assim se encerra o conto que nos mostra a percepção da importância, desde aquela época, da formação da consciência para o homem. Como criatura deficiente, sua sobrevivência na natureza se deveu a essa capacidade, pois o mesmo não possuía armas naturais de proteção, como ocorre com os animais. Percebe-se, assim, que essa formação surge com o símbolo do herói Marduck e que os deuses cósmicos são imprescindíveis na formação e na tomada de consciência do homem, mais precisamente nos componentes Espaço, Tempo, Céu e Terra.

Estes dois últimos simbolizam internamente a capacidade ou componente feminino e masculino (Yin, Yang), eros e logos, relação e discriminação, ligação e separação, sol e lua, dia e noite, análise e holismo, pensamento e sentimento. Em termos de manifestação exterior, remete ao instinto de sobrevivência da espécie, a atividade sexual com a separação macho-fêmea. Esta questão mostra a problemática do convívio íntimo entre as pessoas, fonte de muitos problemas e histeria na época do puritanismo vitoriano, mas hoje com os valores melhor definidos, mesmo que apenas mais satisfatoriamente resolvidos. Mas certamente há mais liberdade e honestidade de propósitos.

A questão interior, a conjunção entre o consciente culturalmente masculino e o inconsciente feminino é sem dúvida de enorme importância, participando da definição sobre a qualidade de vida mental e espiritual de cada pessoa.

Estes fatores e o Espaço serão alvos de maior aprofundamento em outras oportunidades, pois a questão do Tempo torna-se aqui mais adequada e oportuna.

“A inteligência humana não faz outra coisa senão repartir a realidade em pedaços cada vez menores (análise) e escolher entre eles (possibilidade de decisão)”. (*2, p. 21). Ao fazer uma opção, a pessoa descarta outras oportunidades. Se isso for realizado incondicionalmente, abre-se o caminho para a polaridade, ou seja, a percepção de apenas alguns componentes em prejuízo da totalidade da vida. O que se escolheu fica em primeiro plano, mas a outra opção permanece no pano de fundo. Ao dividirmos assim a unidade surge a noção de tempo, essa criação da consciência, significando contemplar uma coisa e depois a outra. Essa sucessão de detalhes escolhidos estabelece o fluxo do tempo.

Esses fatores de escolha tornam-se de uma importância fundamental, pois se concentrarmos em algumas opções sistemática e compulsivamente, perderemos outras. Administrar o tempo passa a ter de caráter quase divino, tal a sua importância para a consciência. A responsabilidade precisa ser assumida dentro dos padrões da consciência individual, sob pena de perda do controle do fluxo da vida e das opções. Quando uma pessoa diz solenemente que não tem tempo, está mostrando sua incapacidade e submetendo-se a alguns pontos que, mesmo sendo importantes, estão tiranizando a atenção em prejuízo da totalidade do ser humano.

Essa situação crítica pode ser vivenciada em fases distintas na vida das pessoas. Entretanto, como um padrão de repetição, certamente trará conseqüências desagradáveis a longo prazo, muitas vezes conduzindo a processos de sofrimento e somatizações. Quem afirma não ter tempo disponível parece clamar por uma ajuda ou apoio, esquecendo-se de que uma análise do seu potencial interior para integrar a totalidade é o caminho mais natural e profícuo. As recompensas externas são importantes, mas não suficientes para que o quadro volte ao mínimo de harmonia mais realista e duradoura. Enquanto não for reconhecida de fato a situação limite a que se chegou, nada poderá ser modificado.

O estilo materialista e consumista do mundo atual colabora com esse cenário que pode levar para a depressão, a neurose e a perda do sentido de vida. A natureza não deixa passar impunes as agressões e contenções dos componentes instintivos e irracionais que participam da vida. A racionalização de que é necessário suprir a vida sempre com conquistas e trabalho exterior funciona como verdadeira agressão ao mundo inconsciente e corporal. Há sempre um preço a pagar quando deixamos de considerar as necessidades da vida, que precisa fluir mais plenamente. Não ter tempo é o mesmo que não ter vida e uma rendição a apenas alguns dos seus aspectos.

O Enuma Elisch mostra a importância universal dos “deuses” formadores da consciência que precisam ser respeitados. A sua criação, tanto para os povos antigos como para os bebês modernos, apresenta conflitos, movimento e barulho que tumultuam o estado inicial de imobilismo e dependência. Isso desperta o “mundo dos monstros” do inconsciente e os instintos devoradores. Mas surge o herói Marduck com o vento que simboliza o espírito renovador e vivificante, conseguindo jogar a sua rede e dominar a indiferenciação perigosa do mundo do inconsciente maternal. Ele faz a divisão com o uso da espada, símbolo masculino da diferenciação, da separação e da discriminação para melhor analisar e conhecer.

Os deuses têm interesses em que o homem amplie sua consciência, já que isso parece ser-lhes benéfico. O homem luta contra o caos no lugar dos deuses, esta é a sua verdadeira adoração. Assim o homem se torna ciente de que é diferente dos deuses e que não pode a eles se igualar.

A consciência traz a capacidade de refletir (do latim reflectere) e isso significa flexionar para trás, isto é, tornar-se ciente da própria condição. A criação precisa tornar-se consciente de si própria. Isso seria honrar o criador e a demanda de adorar os deuses, administrando os conflitos e estabelecendo as prioridades para a ação. E isso só é possível através do contato com o próprio interior onde estão os deuses e a centelha divina (Si-mesmo, Self).

O Tempo (um dos deuses cósmicos) precisa ser honrado, respeitado e reverenciado, o que se mostra essencial para a maior saúde psíquica que também se manifesta através da qualidade de vida. A administração do Tempo deve merecer nossa elevada prioridade se quisermos alcançar uma vivência mais plena.


Ref.
(1) JACOBY, Mario. Conferências em Zurique. 1971.
(2) DETHLEFSEN T e DAHLKE R. A Doença como Caminho. São Paulo: Cultrix, 2006.

09 fevereiro 2009

O fator tempo (1)




O tempo cronológico, também chamado de linear, é um dos aspectos mais importantes do estilo de vida atual. Tantos são os afazeres, as tarefas, os projetos que a vida se esvai inexorável e insistentemente. A gíria “Estou correndo atrás....”, é a imagem que nos remete à dolorosa realidade de pessoas que não conseguem articular e desenvolver aquilo que julgam precisar. Para aumentar ainda mais o grau de ansiedade, dizem que a ciência comprovou que o tempo está realmente acelerado, fazendo com que as pessoas se sintam ainda mais devedoras de novas tarefas e futuras atividades. Assim, aumenta o desgaste e a sensação de incapacidade para realizar o que é necessário.

A falta de tempo está se tornando um mito moderno que serve de pretexto para nos desvencilharmos de compromissos relacionados com as relações humanas e atividades comuns da vida cotidiana. Tudo isso passa a influenciar a qualidade de vida, a saúde, aumentando a sensação de desgaste e solidão. Nesse ritmo, fica patente que as relações pessoais passam a ficar em segundo plano, assim como há evidência de que temos dificuldades em priorizar nossos próprios interesses.

Nesse contexto, surgem alguns movimentos questionadores desse ritmo de vida apressado, de forma a valorizar o estilo mais lento e autêntico. Como exemplo, após a dominação do conceito de comida muito rápida para se ganhar tempo, surge a tendência ainda localizada e incipiente de retorno ao tipo de alimentação natural e que incorpore um ritmo mais lento. São pequenos indícios de que nem tudo está perdido; há salvação nessa correria desenfreada! Entretanto, verdadeiros desafios para ordenar as atividades não constituem invenção da modernidade.

Na Grécia antiga, a “tecné” tinha os componentes de arte e criação, sem privilegiar quantidade ou linha de produção. Valorizava-se a liberação de mais tempo para lazer, festividades, poesia, teatro, festas pagãs e religiosas. O desenvolvimento da medicina ocorreu em Epidauro, centro de tratamento que incluía os fatores do corpo e da mente. Era importante a prática de atividades que trouxessem satisfação e prazer, assim como era valorizada a disponibilidade para o ócio. Sem esse tempo livre não poderia haver saúde.

O grego levava esse assunto tão a sério que só algo muito importante o convencia a negar o ócio, ou seja, precisava de argumentos sólidos e consistentes para sair e fazer um “negócio”. Atualmente esta equação parece estar totalmente invertida, com elevado valor em se fazer sempre bons negócios. E o tempo disponível para a saúde física, mental e espiritual?

O mundo do trabalho é absolutamente necessário, mas não podemos ter nossa identidade formada com o predomínio absoluto dos aspectos profissionais (persona!). Assim, a primeira pergunta que se faz a outra pessoa que se conhece diz respeito à sua profissão. Esta curiosidade é natural e complementar, mas não podemos descrever, compreender ou limitar o ser humano apenas por sua atividade de trabalho. A própria etimologia da palavra “trabalho” vem do latim “tripalium”, que significa instrumento de tortura, do mesmo modo que labor significa sofrimento.

O trabalho não é um problema em si, mas sim o que estamos fazendo com ele. O mesmo dignifica o ser humano, mas precisa constituir-se também em fonte de prazer e de liberdade. Em muitos casos ele é transformado em atividade enfadonha, cansativa, causadora de mortes, doenças e insatisfações. E as pessoas não são apenas “recursos humanos”.

A palavra “ócio” apresenta outros desdobramentos que não apenas o pejorativo tão habitualmente utilizado. A sua etimologia mostra que ela vem do grego “skolé”, originando no latim o termo “schola”, que significa “escola” em português. Como “trabalho” está associado com negar o ócio, diz-se que Filosofia, Ciência e Arte são filhas do ócio, ou seja, da “Escola”. São assim atividades que podem privilegiar o ser humano integral e não apenas o seu componente produtivo.

A visão grega das atividades e do próprio mundo era integradora, contemplando todos os aspectos conhecidos. E não vamos ao encontro dessa visão para desmerecer o trabalhar e sim mostrar que ele pode ser integrado com outros interesses e atividades para o ser humano, de maneira a trazer benefícios para todos.

A escola atual nos remete à idéia mais abrangente de educação, atividade que deveria ser mais valorizada como referência da sociedade em preparar os cidadãos para a vida. Há a preocupação em ampliar o conhecimento histórico-cultural-científico, mas grande omissão em valorizar os aspectos humanos e ensinamentos como o estabelecimento de metas e prioridades individuais e coletivas, como também na administração de tempo e energia. Nesse prisma, a discussão em torno do ensino religioso poderia abranger aspectos mais amplos e espirituais de realização do ser humano.

Quaisquer obras e realizações das pessoas, entretanto, pressupõem um planejamento de atividades que leve em conta a administração do fator tempo. Esse é um ponto crítico atual, pois o progresso, o conhecimento e as novas tecnologias parecem despertar sempre mais e maiores necessidades nas pessoas. E assim aperta-se esse círculo de exigências auto-impostas, aumentando as preocupações por mais atividades e menos tempo disponível.

Os poetas e os artistas sempre apreciaram a exploração do tema. Um exemplo de Gilberto Gil, realçando este fator no trono da elevada importância nas vivências:


TEMPO REI

Não me iludo, tudo permanecerá do jeito
Que tem sido, transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar, Corcovados
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole, pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento

Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei, transformai as velhas formas do viver
Ensinai, ó Pai, o que eu ainda não sei, mãe senhora do Perpétuo socorrei

Pensamento, mesmo fundamento singular
Do ser humano, de um momento para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos

Mães zelosas, pais corujas
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam, não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo




O alerta da transitoriedade nos toca a sensibilidade pelo lado artístico. A concentração plena no trabalho e nas personas nos afasta dos amigos, da família e da vida mais plena. E tudo pode estar por um segundo!

Caetano Veloso alça o tempo além de um reino, como um dos deuses mais lindos. Conseguirá o ser humano fazer acordo com ele?




ORAÇÃO DO TEMPO

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Vou te fazer um pedido
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Entro num acordo contigo
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Ouve bem o que eu te digo
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Quando o tempo for propício
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definitivo

Tempo, tempo, tempo, tempo
E eu espalhe benefícios
O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Apenas contigo e comigo
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Não serei nem terás sido
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Num outro nível de vínculo
Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Nas rimas do meu estilo
Tempo, tempo, tempo, tempo.
Obs. O próximo artigo será continuação deste e poderá não ser remetido para a lista de emails, mas estará disponível no em http://kairos800.blogspot.com/
Participe conosco. Comente, dê sugestões.......... é importante para nós saber como os artigos estão sendo recebidos por você!
Obs. Recebemos de uma pessoa "anônima" a sugestão de fazer um artigo sobre um certo poeta português de nome provável José Vicente Carvalho. Houve um problema técnico ao manusear o texto no blog e a sugestão foi perdida. Solicitamos que a pessoa interessada confirme esse nome ou o corrija, por favor, para que possamos verificar a possibilidade de um texto sobre ele.


04 fevereiro 2009

Aedos e rapsodos - 2 Manuel Bandeira





Aedos e rapsodos - 2 Manuel Bandeira

Continuando a série de artigos em homenagem aos poetas brasileiros, falaremos de Manuel Bandeira, que contemplou os amantes da poesia com o belíssimo livro “Estrela da Vida Inteira”.

Manuel Bandeira foi um dos mais admirados escritores nacionais, inspirando muitos novos poetas e compositores. Bandeira possuia um estilo simples, direto e suave, talvez o mais lírico dentre os poetas brasileiros. Abordava temáticas cotidianas e universais, lidando com formas e inspirações do dia-a-dia. Como profundo conhecedor de literatura, utilizou temas simples usando formas inspiradas nas tradições clássicas e medievais.

“Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah! Se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Se eu soubesse repor –
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância.”

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho nasceu no Recife no dia 19 de abril de 1886. Aos dezoito anos o autor soube que estava tuberculoso, tendo por este motivo abandonado suas atividades e buscado novas localidades com clima mais apropriado para cuidar de sua saúde. Passou temporadas em diversas cidades: Teresópolis, Maranguape, Uruquê, Quixeramobim.

".... - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino."

Em 1917, publicou seu primeiro livro: A cinza das horas, numa edição de 200 exemplares custeada pelo autor. Bandeira sofria de certa melancolia e angústia pelos riscos de vida em pela falta de tratamento específico que significava a tuberculose naquela época. A todo momento e lugar a morte rondava sua obra poética. Sua poesia conjugava seu drama pessoal e o conflito de estilos poéticos daquela momento histórico (1922 – Movimento Modernista). Isto se faz conhecer em poemas suaves, quando inesperadamente, comentários mordazes interrompem a fluência dos versos.

“Sou bem nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida
Rugiu como um furacão.

Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah! Que dor!
Magoado e só,
- Só! – Meu coração ardeu

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria....
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
- Esta pouca cinza fria....”

Em 1940 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, quando passou a lecionar literatura hispano-americana da Faculdade Nacional de Filosofia. Era o amigo dos amigos e sofria cada vez que Mario Quintana perdia sua indicação para Academia de Letras. Em poesia esperava por Guimarães Rosa para o chá das cinco. Como Rosa achasse que iria morrer quando ali tomasse posse, adiou ao máximo o momento de fazê-lo.

“Não permita Deus que eu morra
Sem que ainda vote em você,
Sem que, Rosa amigo, toda
Quinta-feira que Deus dê
Tome chá lá na Academia
Ao lado de vosmecê,
Rosa dos seus e dos outros
Rosa da gente e do mundo,
Rosa de intensa poesia
De fino olor sem segundo;
Rosa do rio e da rua
Rosa do sertão profundo!”

Poeticamente, em seu livro Grande Sertão: Veredas, Rosa respondeu num diálogo imaginário:
“ Amor vem de amor. Amizade dele, ele me dava e amizade dada é amor.”

Ao que respondeu Manuel Bandeira em tom de pedido:

Respondo a Guimarães Rosa
Em pé de romance assim:
Vou pedir ao Maçarico
Vou pedir ao Miguilim
Que a mano Rosa eles digam:

“Rosa não seja ruim
Faça a vontade do bardo
Ainda que bardo chinfrim”
E eu secundo mano Rosa
Rosa, rosai, rosae, rosoe,
Vou aos meus dias pôr fim
Antes, porém, me prometa,
Pelo senhor do Bonfim
Que a minha futura vaga
Você se apresenta, sim?
Muito saldar a Riobaldo,
Igualmente a Diadorim.

Bandeira, que sofreu a vida inteira pela possível iminência de morte devido a tuberculose, viveu para ver seu amigo Rosa falecer logo após tomar posse na Academia Brasileira de Letras.

Seus poemas se mantêm entre a dor suprema e a alegria extremada compensatória. Seus objetos de desejo eram inalcansáveis e o prazer não se encontrava na satisfação do desejo, mas na excitação do abandono e da perda. Bandeira adotou formas modernistas, abandonando a métrica tradicional e promovendo o verso livre, de forma a acompanhar a tendência do Movimento Modernista.

Comemorou 80 anos em 1966, quando lançou os livros Estrela da Vida Inteira (poesias completas e traduções de poesia) e Andorinha Andorinha (seleção de textos em prosa, organizada por Carlos Drummond de Andrade). No dia 13 de outubro de 1968 morreu o corpo do poeta Manuel Bandeira, mas a sua poesia ficou e perdurará para marcar a trajetória de um dos grandes expoentes brasileiro na literatura do século XX.

“Tu que me deste o teu carinho
E que me deste o teu cuidado,
Acolhe ao peito, como um ninho
Acolhe o pássaro cansado,
O meu desejo incontentado.

Há longos anos ele almeja
Em aflita escuridão
Sê compassiva e benfazeja
Dá-lhe o melhor que ele deseja
-Teu grave e meigo coração.

Sê compassiva se algum dia
Te vier do pobre agravo e mágoa
Atenue a sua dor sombria
Perdoa o mau que desvaria
E traz os olhos rasos de água.

Não te retires ofendida
Pensa que nesse grito vem
O mal de toda a minha vida
Ternura, inquieta e malferida
Que, antes, não dei nunca a ninguém.

E foi melhor nunca a ter dado:
Em te pungindo algum espinho
Cinge-a ao teu seio angustiado
E sentirás meu coração
E sentirás o meu cuidado.”

01 fevereiro 2009

Mário Quintana

O último artigo, sobre Mário Quintana, foi publicado com algumas incorreções. Pedimos desculpas por isso e informamos que o texto foi modificado e corrigido.

28 janeiro 2009

Aedos e Rapsodos - Mário Quintana



O começo, o início de alguma criação é sempre bem instigante e nebuloso. O conhecimento humano, desde sempre inspira estudiosos que propõem o princípio com o estado caótico evoluindo para algo mais estruturado – o cosmo. Muito do conhecimento da civilização ocidental se deve ao trabalho incessante dos poetas e declamadores (aedos e rapsodos) que tornaram possível a permanência dos saberes primordiais. Eles participavam ativamente da sociedade grega, usando as praças públicas para contar em versos as façanhas e estórias dos ancestrais. Foi conhecendo estas poesias que Homero e Hesíodo compuseram as epopéias que nos fazem conhecedores das sagas e lendas dos primeiros homens que habitaram a Grécia, berço da civilização ocidental. Homero e Hesíodo foram os primeiros a usar a linguagem escrita no mundo ocidental. A partir desse ponto, em incontáveis épocas e regiões do mundo, inúmeros poetas criaram e descreveram originalmente situações ou momentos.

Nos primórdios da escrita, ainda na fase mito-poética, o poeta era chamado de “fingidor”, pois ele utilizava as falas de suas personagens para se referir a possíveis diálogos com reis, aristocratas e deuses. Assim como um sonhador, conseguia se antecipar ao seu tempo, percebendo e intuindo os acontecimentos antes de terem ocorrido. Sua aguçada percepção era usada na poesia para falar ao coração dos homens sobre temas que ainda não eram perfeitamente conhecidos e que apontavam para possibilidades futuras do inconsciente da população. Os poetas, brincando com as palavras e colocando intensa emoção, desafiavam a passagem do tempo cronológico, dando voz aos sentimentos e sensações de toda uma cultura ou sociedade.

Em todas as épocas e lugares os poetas estiveram presentes, marcando cada momento histórico. Muitos estudiosos consideram os poetas seres divinizados, pois como um deus eles concebem algo através das palavras.

São muitos os poetas brasileiros que tornam nossa leitura interessante e profundamente rica. Para começarmos a falar de poesia brasileira, Mario Quintana, o gaúcho impertinente, sarcástico e bem humorado inicia uma série de artigos em homenagem a estes grande escritores que nos fazem sonhar e admirar o mundo.

Nada mais adequado que o próprio Quintana se descrever e assim começarmos a nos acostumar com seu humor ferino e bem dosado. “O ironista se julga superior às suas personagens; o humorista, nunca. O primeiro diverte-se à custa alheia e o último à sua própria custa.”

MARIO QUINTANA POR MARIO QUINTANA – “nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão.” (texto escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984).

“Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Há! Mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai ! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas : ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a eternidade.

Nasci do rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro – o mesmo tendo acontecido a Sir Isaac Newton!

Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que nunca acho que escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! Sou é caladão, introspectivo. Não sei por que sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?

Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante 5 anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Veríssimo – que bem sabem (ou souberam), o que é a luta amorosa com as palavras.”

As poesias de Quintana possuem a feliz característica da espontaneidade, pois o poeta fala e escreve seus sentimentos sem meias palavras ou medidas. Talvez por isso mesmo, foi tão respeitado e admirado como um grande homem e um magnífico poeta. Suas poesias são consideradas verdadeiras conspirações entre o autor e o leitor.

“Eu amo o mundo!
Eu detesto o mundo!
Eu creio em Deus!
Deus é um absurdo!
Eu vou me matar!
Eu quero viver! - Você é louco? - Não, sou poeta.”

“Convivência entre o poeta e o leitor, só no silêncio da leitura a sós. A sós, os dois. Isto é, livro e leitor. Este não quer saber de terceiros, não quer que interpretem, que cantem, que dancem um poema. O verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...”

“A poesia é o mistério evidente.”

“Todas as artes são manifestações diversas da poesia – inclusive, às vezes, a própria poesia.”

Sua vida foi dedicada a colocar em versos os fatos cotidianos e aqueles só imaginados e intuídos. Seus poemas são dotados de beleza nas palavras e, principalmente de emoção e sentimento. As palavras dosadas e usadas para essencialmente decodificar a mensagem que a poesia se propõe. Sua linguagem é direta, sem muitos floreios ou meias-palavras, o que facilita o entendimento. Quintana parte do princípio que as palavras simples bem usadas são mais eficientes que a erudição sem conteúdo.

“Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!”

“Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas.”

“Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!”

Em uma carta resposta, Mario Quintana fala sobre poesia, em como fazê-la e como apreciá-la. É com sinceridade característica que expõe o que é fazer e como escolher a leitura a um novo discípulo.

“A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje........................... Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que, no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.”

Mario Quintana foi um autor de personalidade, admirado e respeitado por seus pares. Dedicou-se à literatura como só um poeta sabe fazê-lo. Entre seus admiradores estavam grandes intelectuais da época: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira.

“Se te contradisseste e acusam-te....sorri
Pois nada houve, em realidade
Teu pensamento é que chegou, por si,
Ao outro pólo da verdade......”

“Enquanto houver poetas, haverá esperança no mundo.”

Manuel Bandeira esperava e torcia por sua entrada para Academia Brasileira de Letras, fato que não ocorreu. Perdida a terceira indicação para a Academia, compôs com seu aguçado e conhecido humor e sarcasmo o: ‘Poeminho do Contra’ (Prosa e Verso, 1978).

“Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!”

Em Porto Alegre, no dia 5 de maio de 1994, próximo de seus 87 anos, faleceu o corpo do poeta e escritor Mario Quintana. Um poeta jamais morre, ele vive enquanto seus versos existirem, ou nas palavras do poeta:

“Quando um grande poeta morre, sente-se esta súbita parada no coração do mundo.”

“Repara como o poeta humaniza as coisas: dá hesitação às folhas, anseio ao vento. Talvez seja assim que Deus dá alma aos homens.”

“Quem faz um poema abre uma janela.”

Mais uma vez o poeta brincou com a existência, escrevendo sobre a morte:
"Amigos não consultem os relógios quando um dia me for de vossas vidas... Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira - em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira".E, brincando com a morte:
"A morte é a libertação total: a morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos".