O começo, o início de alguma criação é sempre bem instigante e nebuloso. O conhecimento humano, desde sempre inspira estudiosos que propõem o princípio com o estado caótico evoluindo para algo mais estruturado – o cosmo. Muito do conhecimento da civilização ocidental se deve ao trabalho incessante dos poetas e declamadores (aedos e rapsodos) que tornaram possível a permanência dos saberes primordiais. Eles participavam ativamente da sociedade grega, usando as praças públicas para contar em versos as façanhas e estórias dos ancestrais. Foi conhecendo estas poesias que Homero e Hesíodo compuseram as epopéias que nos fazem conhecedores das sagas e lendas dos primeiros homens que habitaram a Grécia, berço da civilização ocidental. Homero e Hesíodo foram os primeiros a usar a linguagem escrita no mundo ocidental. A partir desse ponto, em incontáveis épocas e regiões do mundo, inúmeros poetas criaram e descreveram originalmente situações ou momentos.
Nos primórdios da escrita, ainda na fase mito-poética, o poeta era chamado de “fingidor”, pois ele utilizava as falas de suas personagens para se referir a possíveis diálogos com reis, aristocratas e deuses. Assim como um sonhador, conseguia se antecipar ao seu tempo, percebendo e intuindo os acontecimentos antes de terem ocorrido. Sua aguçada percepção era usada na poesia para falar ao coração dos homens sobre temas que ainda não eram perfeitamente conhecidos e que apontavam para possibilidades futuras do inconsciente da população. Os poetas, brincando com as palavras e colocando intensa emoção, desafiavam a passagem do tempo cronológico, dando voz aos sentimentos e sensações de toda uma cultura ou sociedade.
Em todas as épocas e lugares os poetas estiveram presentes, marcando cada momento histórico. Muitos estudiosos consideram os poetas seres divinizados, pois como um deus eles concebem algo através das palavras.
São muitos os poetas brasileiros que tornam nossa leitura interessante e profundamente rica. Para começarmos a falar de poesia brasileira, Mario Quintana, o gaúcho impertinente, sarcástico e bem humorado inicia uma série de artigos em homenagem a estes grande escritores que nos fazem sonhar e admirar o mundo.
Nada mais adequado que o próprio Quintana se descrever e assim começarmos a nos acostumar com seu humor ferino e bem dosado. “O ironista se julga superior às suas personagens; o humorista, nunca. O primeiro diverte-se à custa alheia e o último à sua própria custa.”
MARIO QUINTANA POR MARIO QUINTANA – “nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão.” (texto escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984).
“Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Há! Mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai ! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas : ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a eternidade.
Nasci do rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro – o mesmo tendo acontecido a Sir Isaac Newton!
Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que nunca acho que escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! Sou é caladão, introspectivo. Não sei por que sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante 5 anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Veríssimo – que bem sabem (ou souberam), o que é a luta amorosa com as palavras.”
As poesias de Quintana possuem a feliz característica da espontaneidade, pois o poeta fala e escreve seus sentimentos sem meias palavras ou medidas. Talvez por isso mesmo, foi tão respeitado e admirado como um grande homem e um magnífico poeta. Suas poesias são consideradas verdadeiras conspirações entre o autor e o leitor.
“Eu amo o mundo!
Eu detesto o mundo!
Eu creio em Deus!
Deus é um absurdo!
Eu vou me matar!
Eu quero viver! - Você é louco? - Não, sou poeta.”
“Convivência entre o poeta e o leitor, só no silêncio da leitura a sós. A sós, os dois. Isto é, livro e leitor. Este não quer saber de terceiros, não quer que interpretem, que cantem, que dancem um poema. O verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...”
“A poesia é o mistério evidente.”
“Todas as artes são manifestações diversas da poesia – inclusive, às vezes, a própria poesia.”
Sua vida foi dedicada a colocar em versos os fatos cotidianos e aqueles só imaginados e intuídos. Seus poemas são dotados de beleza nas palavras e, principalmente de emoção e sentimento. As palavras dosadas e usadas para essencialmente decodificar a mensagem que a poesia se propõe. Sua linguagem é direta, sem muitos floreios ou meias-palavras, o que facilita o entendimento. Quintana parte do princípio que as palavras simples bem usadas são mais eficientes que a erudição sem conteúdo.
“Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!”
“Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas.”
“Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!”
Em uma carta resposta, Mario Quintana fala sobre poesia, em como fazê-la e como apreciá-la. É com sinceridade característica que expõe o que é fazer e como escolher a leitura a um novo discípulo.
“A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje........................... Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que, no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.”
Mario Quintana foi um autor de personalidade, admirado e respeitado por seus pares. Dedicou-se à literatura como só um poeta sabe fazê-lo. Entre seus admiradores estavam grandes intelectuais da época: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira.
“Se te contradisseste e acusam-te....sorri
Pois nada houve, em realidade
Teu pensamento é que chegou, por si,
Ao outro pólo da verdade......”
“Enquanto houver poetas, haverá esperança no mundo.”
Manuel Bandeira esperava e torcia por sua entrada para Academia Brasileira de Letras, fato que não ocorreu. Perdida a terceira indicação para a Academia, compôs com seu aguçado e conhecido humor e sarcasmo o: ‘Poeminho do Contra’ (Prosa e Verso, 1978).
“Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!”
Em Porto Alegre, no dia 5 de maio de 1994, próximo de seus 87 anos, faleceu o corpo do poeta e escritor Mario Quintana. Um poeta jamais morre, ele vive enquanto seus versos existirem, ou nas palavras do poeta:
“Quando um grande poeta morre, sente-se esta súbita parada no coração do mundo.”
“Repara como o poeta humaniza as coisas: dá hesitação às folhas, anseio ao vento. Talvez seja assim que Deus dá alma aos homens.”
“Quem faz um poema abre uma janela.”
Mais uma vez o poeta brincou com a existência, escrevendo sobre a morte:
"Amigos não consultem os relógios quando um dia me for de vossas vidas... Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira - em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira".E, brincando com a morte:
"A morte é a libertação total: a morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos".