10 março 2009

A Caverna (4). Lenda Carajá do Brasil.



OBS: É melhor que os artigos sobre o tema Caverna (1, 2, 3 e 4) sejam lidos nesta ordem.




É importante realçar alguns detalhes da lenda de origem dos Carajás. Inicialmente, a referência à caverna, remetendo-nos ao sentido feminino de útero gerador e também transformador, é visto desde os mitos milenares, inclusive de Platão. Trata-se da ressonância do que é universal e humano reverberando em toda parte e culturas diferenciadas, de forma a mostrar o que cada ser individual tem em comum com toda a humanidade.

O mundo das águas é considerado local de origem da vida, sendo o rio um manancial que busca a grande fonte e o seu destino: o misterioso mar. Os antigos Inan (Carajás) estavam em associação com esse mundo idílico de sonho e fantasia onde não havia sofrimento nem fome. As necessidades eram supridas naturalmente por uma proteção superior, não havia o menor trabalho. Bastava sentir fome que a comida estava logo disponível, sem necessidade de qualquer outra preocupação. No início tudo era assim: bondade e maravilha, em um estado de enorme dependência e cuidados que surgiam como bênçãos.

O barro lembra a matéria prima da vida, a argamassa a ser trabalhada, apresentando-se na forma maternal côncava de uma panela sempre disponível com a nutrição desejada. A divindade primordial cuidava de todos, mas assim o desenvolvimento individual não ocorria, o que se manifestava também no aspecto físico com a aglomeração de gorduras de forma generalizada entre os Inan.

Após algum tempo nesse estado de paralisia, era natural que surgisse certa inquietação. Há sempre um componente que percebe intuitivamente as possibilidades de mudanças. Afinal, “fora das águas” daquele mundo inconsciente parecia haver oportunidades para o novo e também acontecimentos mais subjetivos que estimulassem as escolhas individuais. Seria a possibilidade de obtenção de consciência?

Mas ninguém jamais retornara desse lugar! Parece ser assim um caminho sem volta, ou seja, certo desenvolvimento que não admite retrocesso. E curiosidade humana é assim: desperta devagar e toma conta. Só é possível contê-la na sua origem. E esse não foi o caso de Kboi ao ser contaminado pela criatividade e vontade de ser senhor do seu destino. A aventura o chamava e nada melhor do que prosseguir com um amigo cujas características completassem a si mesmo, pois se um era introvertido, o outro, U-ô-Ubedô conseguia espontânea extroversão e coragem exterior.

Esta complementaridade psicológica foi vista também no mito grego de Prometeu, que formava certa unidade com seu irmão Epimeteu. O primeiro pensava antes e agia depois, ao passo que Epimeteu partia logo para a ação (Pro + meteu = o que pensa antes, Epi = depois). Kboi pensou muito antes de agir, mas, ao chegar aonde o rio era mais fundo e a água mais escura, foi a ação do seu amigo, melhor preparado para as aventuras no mundo exterior, que se mostrou viável. Ele estava mais apto e equipado para ultrapassar a fenda que separava os dois mundos.

Sentir movimentar-se nas águas é uma situação nova e muito diferente que a estagnação sob as águas. Só assim foi possível chegar à terra firme, caminhar ereto e sentir a capacidade renovadora e refrescante do vento atingindo o corpo e a alma. A exploração desse novo cenário foi algo deslumbrante, mas os animais não surgiram nesse primeiro momento. Apenas a vegetação e a falta da panela de barro! A sensação de fome e dor, como enfrenta qualquer bebê, mostra o início do entendimento de que a situação realmente se modificara por completo e não apenas a paisagem externa.

O novo traz necessidade de adaptação e qualquer dificuldade nos leva a certa regressão da libido (energia psíquica) e para estados anteriores vividos. É o recuar para melhor saltar como possibilidade para viabilizar o futuro. A alternativa foi voltar até onde permanecia seu amigo, onde os dois vivenciaram a insegurança e a incerteza da nova situação.

Kboi tinha capacidade concreta e habilidades de movimentação no mundo interior e materno como origem da vida. Assim ele retorna ao seu núcleo central nas camadas mais profundas da sua psique para buscar inspiração e “pedir conselhos” da sua divindade Kanansiuê. Entretanto o herói percebe que o mundo físico e externo segue as suas próprias leis sem a ação direta do seu deus. Em termos psicológicos, o mundo da consciência tem a ação do eu (ego) que é o seu centro diretor para agir e fazer suas escolhas: aí os poderes “divinos” (do Si-mesmo ou Self) ficam limitados. Assim Kboi percebeu que o Grande Pai não poderia para proteger seus filhos no mundo fora do paraíso, ou seja, da consciência. Nesse mundo real e concreto cada um deveria assumir as responsabilidades por suas escolhas que fossem frutos do próprio conhecimento a ser adquirido.

Sentindo-se no caminho sem volta para a sua tomada de consciência, o jovem carajá mostrou obstinação e concentrou suas energias. Ele se fortaleceu com outros componentes da sua própria tribo, que o ajudou a encontrar seu amigo para então fundarem, no “barranco mais alto”, a primeira aldeia em terra firme.

A liberdade trouxe trabalho, riscos e necessidade de ampliação do conhecimento sobre a própria vida. Tornou-se necessário investigar o que era bom e o que era mau. Mas o deus Kanansiuê, como uma luz interior que se mantinha presente, não os abandonou, como pai verdadeiro nunca abandona seus filhos, trazendo-lhes a ajuda através do urubu-rei.

O auxílio simbólico de uma ave, mesmo que um abutre tão necessário ao equilíbrio da natureza, mostra a interferência de um ser ligado ao elemento ar. Mesmo com suas limitações, ele pareceu ser adequado para trazer capacidades de discriminação e diferenciação para a obtenção do conhecimento e garantia da possibilidade de vida. Função tipicamente do logos relacionado ao desenvolvimento do componente masculino.

Os aspectos femininos ficam mais bem demarcados na última variante da lenda apresentada. A escuridão, que predominava, estava relacionada com esse elemento, como também a própria terra a ofertar os alimentos na forma de frutos e raízes. Não havia ainda um raio de luz para clarear a consciência e trazer as possibilidades de aumentar a sabedoria no convívio com as novas situações. Como o jovem ainda não tinha o necessário discernimento, critério ou juízo de valor, alimentou-se com mandioca brava, o que comprometeu seriamente sua saúde.

O limitado aspecto masculino e rudimentar do conhecimento representado pelo urubu mostrava-se no modo de a ave se movimentar em passo desengonçado e saltitante. Entretanto, o menino já desenvolvera certas capacidades, o que ficou estabelecido na sua busca da composição com seu elemento feminino. Este surge na forma da menina com a qual se casou e a também na figura da mãe dessa jovem.

O objetivo era se livrar da escuridão que impregnava o mundo sem graça e sem vida, precisando de “enfeites” para ser ornamentado e também permitir a expansão da existência. As luzes das estrelas, da lua e do sol mostram a evolução das possibilidades de maior observação, análise, discernimento e conhecimento que podem ser proporcionadas pela consciência, cuja simbologia aponta exatamente para o sentido de luz. Onde se faz a luz é possível a formação da consciência.

Assim o ser humano, na medida das suas condições internas e externas, pode nascer e morrer, cumprindo a meta primordial da vida: a ampliação da consciência.


Ref.
ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil, histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, sem data.

Nenhum comentário: