Obs: É melhor que os artigos A Caverna 1, 2, 3 e 4 sejam lidos na sequência.
Há outras versões da lenda sobre a origem dos antigos índios carajás. Essas estórias diferentes apenas fortalecem o conteúdo simbólico de todo o conjunto. Vale a pena apreciar e verificar como podem se complementar ou mesmo amplificar o conteúdo.
Esses povos indígenas vieram do Furo das Pedras, originando-se de um local debaixo d’água. Nesse mundo subterrâneo, a luz penetrava enquanto na superfície era noite. Eram então muito felizes e morriam de velhice só mesmo depois de terem cansado de viver. Certo dia um grupo resolveu sair de lá e passaram a habitar a terra. Entretanto um deles, por ser muito robusto, não conseguiu passar pelo furo da pedra, ficando ali entalado. Os que subiram trouxeram-lhe frutos, comidas e galhos secos de árvores. Ele se surpreendeu e alertou: “Vejam esses galhos secos das árvores, lá as coisas morrem! Não quero mais prosseguir. Voltem para nosso lugar onde viveremos para sempre.” Mas ninguém o ouviu e ele voltou para o fundo do buraco.
Os carajás que passaram pelo buraco tiveram que se acostumar com os períodos de escuridão e se alimentavam com raízes e frutos do mato que precisavam ir catar.
Em certa ocasião, um menino chegou, viu uma menina, achou-a bonita e com ela se casou... Depois ele mandou que ela fosse buscar frutos (ao mato), mas estava tudo escuro. A mãe da menina se aproximou, desejando ajudar, mas como estava escuro para colher frutos, machucou a mão nos espinhos. Nada podiam fazer por conta da penumbra, de modo que teriam de esperar que aparecesse pelo menos um raio de sol para clarear.
Aí a mãe resolveu mandar o menino buscar raízes. Com a escuridão, ele pegou a primeira raiz de mandioca que conseguiu achar e comeu. Mas era mandioca brava, o que o levou a passar mal, ficando deitado de costas.
Logo chegou um urubu, vindo com o seu passo desengonçado, dizendo para os outros: - “Ele não está morto, ainda se move.” O menino continuava deitado de costas, com os olhos piscando. Chegaram mais urubus voando ou saltitando pelo chão para beliscar e bicar o garoto.
Enquanto isso, um caracará muito cuidadoso ficou voando em redor, observando. Chegou mais perto do menino e gritou para os urubus: - “Cuidado, ele está vivo!” Os urubus em coro responderam: - “Ele está morto!” E a discussão virou a maior confusão: - “Ele está morto! Ele está vivo!” Para acabar com aquela bagunça, o carcará foi buscar o urubu-rei, que atestou estar vivo o menino.
O caracará resolveu buscar o avô do urubu-rei, de bico vermelho e o cabelo ralo, que chegou e disse: - “Ele está morto!” E rapidamente pousou sobre a barriga do menino. Então ouviu-se um estalo... O menino pegou o urubu-rei com as mãos. Ele se debateu, esperneou, quis fugir, mas estava seguro. Então o menino disse ao urubu-rei: - “Quero enfeites!” E o urubu-rei respondeu: - “Vou trazer!” E trouxe as estrelas do céu. O menino não gostou porque continuava escuro: - “Quero outro enfeite!” O urubu trouxe a lua. E o menino respondeu: - “Também não serve, ainda está escuro!” Então o urubu-rei trouxe o sol. E o menino ficou contente porque tudo ficou claro. Era o dia.
A mãe se aproximou do urubu-rei, que passou a ensinar-lhe a utilidade de todas as coisas. Então o menino soltou o urubu-rei. Nisso a mãe lembrou-se de perguntar qual era o segredo da eterna juventude. O urubu respondeu, mas infelizmente ele estava tão alto que muitos ouviram a resposta: as árvores, os peixes, os animais. Infelizmente, pela altura em que ele voava, a mãe e o menino não conseguiram ouvir o que o urubu disse naquele momento.
É por isso que envelhecemos e morremos.
Assim se encerra a lenda. Certamente muitas crianças atuais gostariam de ouvir estórias assim: por que não contar para elas? E os adultos são levados à profunda reflexão sobre o sentido de todas essas coisas.
Estas são aventuras e acontecimentos fantásticos transmitidos pela tradição carajá. Podemos perceber a estrutura básica dos mitos consagrados desde a antiguidade, tratando-se, como eles, de narrativas cosmogônicas (origem da ordem e do mundo) ou de ampliação da consciência. Esses são os aspectos basilares dos mitos, mostrando a formação do cosmos, que equivale na Psicologia Junguiana à formação da consciência.
A noção geral de caos remete à noção de confusão geral dos elementos antes da formação do mundo, onde imperava certa desordem. É dessa indiferenciação inicial que lentamente se estabelece certa ordem, arranjo e estruturação. As coisas e seres parecem ter melhor definidos os seus lugares, podendo estabelecer sua existência individual. Os seres humanos passam a ter noção da sua consciência individual e coletiva, ainda que nos primeiros e primitivos estágios tudo ainda fosse percebido com certo grau de confusão e indiferenciação.
Olhando para os dias atuais, antes de o bebê desenvolver os primeiros sinais da sua percepção ou da sua consciência, há de se observar que o mundo já estava ali com todos os atores e cenários próximos: mãe, pai, avós, tios, casa, aparelho de tv, videogame e tudo o mais. A formação da consciência é um ato criador do mundo no sentido de visão e experienciação com esse mundo. Passará toda a existência e certamente o novo ser não conseguirá tomar conhecimento de todos os detalhes e potencialidades do mundo em que vive.
Os passos da sua evolução são muito lentos, meses se transcorrem até o bebê estabelecer a sua incipiente noção de identidade. No início, é tudo muito misturado e indiferenciado, pois ele próprio, a mãe e o mundo se confundem, estando amalgamados e anelados. É como se o mundo fosse sendo criado progressivamente. Assim, cada início ou ampliação da consciência corresponde a um ato de criação do mundo que assim vai sendo descoberto.
A formação da consciência individual caminha na mesma proporção da consciência coletiva de uma sociedade, povo ou nação. Afinal o que o grupo conhece do mundo é o que pode ser passado para os bebês das novas gerações. Cada ser humano que nasce traz suas capacidades humanas, tanto corporais como psíquicas. Cabe desenvolvê-las no seu meio e nas relações pessoais e culturais, pois sem essa troca qualquer processo de desenvolvimento permanecerá estagnado em algum ponto.
(continua)
Ref.
ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil, histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, sem data.
Há outras versões da lenda sobre a origem dos antigos índios carajás. Essas estórias diferentes apenas fortalecem o conteúdo simbólico de todo o conjunto. Vale a pena apreciar e verificar como podem se complementar ou mesmo amplificar o conteúdo.
Esses povos indígenas vieram do Furo das Pedras, originando-se de um local debaixo d’água. Nesse mundo subterrâneo, a luz penetrava enquanto na superfície era noite. Eram então muito felizes e morriam de velhice só mesmo depois de terem cansado de viver. Certo dia um grupo resolveu sair de lá e passaram a habitar a terra. Entretanto um deles, por ser muito robusto, não conseguiu passar pelo furo da pedra, ficando ali entalado. Os que subiram trouxeram-lhe frutos, comidas e galhos secos de árvores. Ele se surpreendeu e alertou: “Vejam esses galhos secos das árvores, lá as coisas morrem! Não quero mais prosseguir. Voltem para nosso lugar onde viveremos para sempre.” Mas ninguém o ouviu e ele voltou para o fundo do buraco.
Os carajás que passaram pelo buraco tiveram que se acostumar com os períodos de escuridão e se alimentavam com raízes e frutos do mato que precisavam ir catar.
Em certa ocasião, um menino chegou, viu uma menina, achou-a bonita e com ela se casou... Depois ele mandou que ela fosse buscar frutos (ao mato), mas estava tudo escuro. A mãe da menina se aproximou, desejando ajudar, mas como estava escuro para colher frutos, machucou a mão nos espinhos. Nada podiam fazer por conta da penumbra, de modo que teriam de esperar que aparecesse pelo menos um raio de sol para clarear.
Aí a mãe resolveu mandar o menino buscar raízes. Com a escuridão, ele pegou a primeira raiz de mandioca que conseguiu achar e comeu. Mas era mandioca brava, o que o levou a passar mal, ficando deitado de costas.
Logo chegou um urubu, vindo com o seu passo desengonçado, dizendo para os outros: - “Ele não está morto, ainda se move.” O menino continuava deitado de costas, com os olhos piscando. Chegaram mais urubus voando ou saltitando pelo chão para beliscar e bicar o garoto.
Enquanto isso, um caracará muito cuidadoso ficou voando em redor, observando. Chegou mais perto do menino e gritou para os urubus: - “Cuidado, ele está vivo!” Os urubus em coro responderam: - “Ele está morto!” E a discussão virou a maior confusão: - “Ele está morto! Ele está vivo!” Para acabar com aquela bagunça, o carcará foi buscar o urubu-rei, que atestou estar vivo o menino.
O caracará resolveu buscar o avô do urubu-rei, de bico vermelho e o cabelo ralo, que chegou e disse: - “Ele está morto!” E rapidamente pousou sobre a barriga do menino. Então ouviu-se um estalo... O menino pegou o urubu-rei com as mãos. Ele se debateu, esperneou, quis fugir, mas estava seguro. Então o menino disse ao urubu-rei: - “Quero enfeites!” E o urubu-rei respondeu: - “Vou trazer!” E trouxe as estrelas do céu. O menino não gostou porque continuava escuro: - “Quero outro enfeite!” O urubu trouxe a lua. E o menino respondeu: - “Também não serve, ainda está escuro!” Então o urubu-rei trouxe o sol. E o menino ficou contente porque tudo ficou claro. Era o dia.
A mãe se aproximou do urubu-rei, que passou a ensinar-lhe a utilidade de todas as coisas. Então o menino soltou o urubu-rei. Nisso a mãe lembrou-se de perguntar qual era o segredo da eterna juventude. O urubu respondeu, mas infelizmente ele estava tão alto que muitos ouviram a resposta: as árvores, os peixes, os animais. Infelizmente, pela altura em que ele voava, a mãe e o menino não conseguiram ouvir o que o urubu disse naquele momento.
É por isso que envelhecemos e morremos.
Assim se encerra a lenda. Certamente muitas crianças atuais gostariam de ouvir estórias assim: por que não contar para elas? E os adultos são levados à profunda reflexão sobre o sentido de todas essas coisas.
Estas são aventuras e acontecimentos fantásticos transmitidos pela tradição carajá. Podemos perceber a estrutura básica dos mitos consagrados desde a antiguidade, tratando-se, como eles, de narrativas cosmogônicas (origem da ordem e do mundo) ou de ampliação da consciência. Esses são os aspectos basilares dos mitos, mostrando a formação do cosmos, que equivale na Psicologia Junguiana à formação da consciência.
A noção geral de caos remete à noção de confusão geral dos elementos antes da formação do mundo, onde imperava certa desordem. É dessa indiferenciação inicial que lentamente se estabelece certa ordem, arranjo e estruturação. As coisas e seres parecem ter melhor definidos os seus lugares, podendo estabelecer sua existência individual. Os seres humanos passam a ter noção da sua consciência individual e coletiva, ainda que nos primeiros e primitivos estágios tudo ainda fosse percebido com certo grau de confusão e indiferenciação.
Olhando para os dias atuais, antes de o bebê desenvolver os primeiros sinais da sua percepção ou da sua consciência, há de se observar que o mundo já estava ali com todos os atores e cenários próximos: mãe, pai, avós, tios, casa, aparelho de tv, videogame e tudo o mais. A formação da consciência é um ato criador do mundo no sentido de visão e experienciação com esse mundo. Passará toda a existência e certamente o novo ser não conseguirá tomar conhecimento de todos os detalhes e potencialidades do mundo em que vive.
Os passos da sua evolução são muito lentos, meses se transcorrem até o bebê estabelecer a sua incipiente noção de identidade. No início, é tudo muito misturado e indiferenciado, pois ele próprio, a mãe e o mundo se confundem, estando amalgamados e anelados. É como se o mundo fosse sendo criado progressivamente. Assim, cada início ou ampliação da consciência corresponde a um ato de criação do mundo que assim vai sendo descoberto.
A formação da consciência individual caminha na mesma proporção da consciência coletiva de uma sociedade, povo ou nação. Afinal o que o grupo conhece do mundo é o que pode ser passado para os bebês das novas gerações. Cada ser humano que nasce traz suas capacidades humanas, tanto corporais como psíquicas. Cabe desenvolvê-las no seu meio e nas relações pessoais e culturais, pois sem essa troca qualquer processo de desenvolvimento permanecerá estagnado em algum ponto.
(continua)
Ref.
ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil, histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, sem data.
Nenhum comentário:
Postar um comentário