28 fevereiro 2009

A Caverna (2). Lenda Carajá do Brasil.


OBS: É melhor que os artigos sobre "A Caverna" sejam lidos na sequência 1, 2, 3 e 4.


A continuação do artigo anterior diz respeito à universalidade do tema “caverna”, mostrando que além do mito de Platão temos em povos nativos no Brasil similaridades e potencialidades no interior e no exterior da caverna mitológica. É a forte ligação humana do inconsciente coletivo. Vamos então fazer essas conexões com um exemplo muito prático e brasileiro:

Contam histórias muito antigas e estranhas dos povos indígenas Carajás, que habitaram há muito, muito tempo mesmo, a região da ilha do Bananal (a maior ilha fluvial do mundo). O rio Araguaia se duplica para contornar essa magnífica ilha situada entre os estados de Goiás e Mato Grosso do Norte.

Os índios Carajás moravam no fundo desse rio, que em língua tupi significa rio das araras. Só Kanansiuê, o seu deus, seria capaz de explicar como eles passaram a morar no fundo desse rio misterioso. Nessa aldeia todos viviam com muita paz, nada faltava ou incomodava. Mesmo a alimentação não dava qualquer trabalho, pois quando a fome começava a chegar havia uma panela de barro para cada um, sempre cheia de comida. A panela se enchia novamente sempre que alguém a esvaziava. Não dava o menor trabalho, era uma dádiva da ação e bondade infinitas de Kanansiuê.

Com esse abençoado e protegido tipo de vida, eram todos muito gordos, principalmente as mulheres. Não havia sofrimento, doenças ou dor de qualquer espécie. Assim, no fundo do rio, ninguém morria: era somente nascer, crescer, engordar, e reproduzir-se à vontade. O invisível pai Kanansiuê estava sempre presente cuidando de todos os Inan, como eles se chamavam entre si.

A vida na aldeia começou a ficar sem graça e monótona, apesar de ninguém ter motivo para ficar insatisfeito. Os mais jovens ficavam a maior parte do tempo sentados em volta de um índio mais velho, que contava as estórias da tribo; em todas elas, Kanansiuê era exaltado pelos seus feitos benevolentes.

Apesar de nada faltar para viver tranquilamente, um dia o índio chamado Kboi começou a mostrar sinais de inquietação. Ele tinha ouvido falar que fora das águas, além das margens do grande rio das araras, havia outras formas de vida, um mundo completamente diferente daquele que todos conheciam. Assim ele soube a respeito de animais estranhos e de uma vegetação abundante com a qual os Inan não estavam acostumados ali embaixo do rio.

A curiosidade de Kboi foi aumentando de mansinho, despertando o desejo de conhecer esse mundo novo e imaginário. As descrições fabulosas a respeito dessa estranha realidade eram encantadoras, mas ninguém retornara desse lugar. Mesmo assim ele foi ficando cada vez mais inquieto e curioso, chegando a chamar a atenção dos mais velhos que tentaram persuadi-lo contra qualquer aventura. As coisas são como são, disse-lhe uma vez um índio mais velho. Para que sair ou ir embora? Ele não tinha tudo o que precisava no fundo do rio? Kanansiuê não era amigo de todos? Para que se preocupar com o tempo se ele não tinha qualquer utilidade?

Nem mesmo Kboi sabia responder a essas perguntas, mas sentia crescer a sua curiosidade com uma força irresistível. Ele procurou o amigo chamado U-ô-Ubedô, dividindo suas inquietações, certo mal estar, além de ousados planos para praticarem uma aventura. O amigo relutou um pouco, mas terminou concordando em acompanhá-lo. “E se nós dois morrermos?” Perguntou-lhe, tendo como resposta: “Eu não sei... Você não está cansado desta vida de nunca morrer... de nunca acontecer nada?”

Os dois amigos decidiram procurar a saída que dava acesso à superfície do rio. Tinham ouvido falar de um buraco para chegar à tona, o ruê Bêérokan, que conseguiram encontrar depois de prolongada busca e cansativa caminhada. Perceberam que o orifício estava localizado justamente no local onde o rio era mais fundo e a água mais escura.

Dizem que, ao amanhecer, chegaram nesta pequena passagem e Kboi foi o primeiro a subir, tentando atingir o novo mundo. Ele pôs a cabeça para fora, olhou em redor, viu as margens, as grandes árvores de copas frondosas, mas algumas estavam caídas. Procurou em vão sinais de vida, não aparecendo qualquer dos fantásticos animais de que lhe falaram. O que estaria acontecendo? Seriam verdadeiros os relatos que ouvira? Ou seria Kanansiuê que afastou os animais para desanimar os amigos?

Kboi ficou intrigado com aquela situação. Tentou sair de uma vez para a superfície, mas era muito gordo e a sua barriga não permitiu, mesmo forçando o corpo na passagem. Ficou entalado: meio do lado de fora e metade para dentro, tendo que ser ajudado por U-ô-Ubedô para retornar. Seu amigo, um pouquinho menos gordo, experimentou a passagem, ajeitou-se e conseguiu. De pronto, viu-se nadando sobre as águas, o que era para ele uma sensação absolutamente nova e inusitada. Entusiasmado com o sucesso, dirigiu-se para uma das margens, pisou em terra firme e viu-se caminhando sobre os próprios pés com o ar batendo no corpo.

O jovem índio Inan (como os Carajás se chamavam) ficou deslumbrado com o que via. Como Kboi, não encontrou qualquer vestígio de animais diferentes. Depois de andar por algum tempo, sentiu fome e percebeu a panela de comida bem ao seu lado. Alimentou-se fartamente, como de hábito, e prosseguiu explorando aquele mundo novo e enigmático. Tudo atraia sua atenção, cada árvore, arbusto e toda a vegetação. Mais tarde, ele sentiu fome novamente, mas para sua surpresa a panela de barro não estava lá. A princípio não deu maior importância ao fato, mas a fome foi aumentando. Ele achou muito estranha aquela nova sensação com o estômago vazio, pois era algo que para ele poderia ser dor. Resolveu voltar.

Kboi o aguardava ansioso para ouvir os detalhes da sua exploração. O amigo então contou tudo o que viu, mas estava fortemente impressionado com a ausência da panela de comida. Pediu ao amigo que lhe trouxesse algo para comer, pois aquela sensação estava se tornando insuportável; ele não sabia que era assim tão ruim.

U-ô-Ubedô tentou voltar pelo buraco, mas para sua surpresa não conseguiu o seu intento. Isso era estranho e preocupante, pois a abertura permanecia a mesma. Não dava para entender por que a passagem só poderia ser feita de dentro para fora, sem conseguir retornar para dentro. Os dois ficaram atordoados e começaram a acreditar nas estórias dos mais velhos: não haveria volta para quem fosse à superfície.

Sem saber o que fazer, Kaboi, que ficara do lado de dentro, decidiu voltar à aldeia no fundo do rio para pedir conselhos aos anciãos. Rogou-lhes que intercedessem junto a Kanansiuê. Eles o fizeram a contragosto. O deus, já irritado, concordou em deixá-los partir, alertando que fora das águas os seus próprios poderes eram muito limitados.

Kboi era mesmo um obstinado, estava decidido a correr todos os riscos. E começou a fazer um rigoroso regime de emagrecimento enquanto tentava influenciar outros índios a arriscarem a vida do lado de fora das águas. Conseguiu convencer um grupo que o seguiu ao encontro do amigo que já estava impaciente do lado de fora. Atingiram a superfície e nadaram até a margem do rio, caminhando até encontrar um barranco mais alto. Escolheram essa posição para formar a primeira aldeia em terra firme.

Entretanto a vida era muito difícil, logo eles tiveram que aprender a pescar e a caçar, precisavam saber quais as plantas serviam para a sua alimentação e quais eram venenosas. Não tinham noção de como construir uma cabana, ficando, durante muito tempo, sofrendo expostos às intempéries. Eles não conseguiam adivinhar o que era bom e o que era mau. No fundo do rio, era tudo igual, ninguém precisava saber dessas coisas. Logo alguns índios começaram a adoecer e a morrer. Quando o desespero chegou a um ponto crítico, Kanansiuê apareceu-lhes na forma de um índio alto e forte, dizendo: “ – Permiti que vocês saíssem por causa do desejo de vocês e nem mesmo um deus deverá matar nos homens os seus anseios de liberdade. Mas isso me doeu muito, pois lá, no fundo das águas, eu lhes dava tudo e vocês recusaram as minhas dádivas”.

Mesmo magoado, Kanansiuê decidiu ajudá-los, saindo em busca do urubu-rei, conseguindo atraí-lo e aprisioná-lo, obrigando-o a passar um dia na terra, entre os Inan, ensinando-lhes tudo o que precisassem para conseguir sobreviver fora das águas.


Ref.
PERET, João Américo. Mitos e Lendas Karajá. Rio de Janeiro: Peret, 1979.


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