14 fevereiro 2009

O Fator Tempo (2)



Depois de um passeio pela importância do tempo englobando vários segmentos da vida das pessoas, atingindo o reinado de importância em trabalho, família, lazer, artes e amizade – nada mais prazeroso e refrescante do que verificar o assunto também com o auxílio da mitologia.

O poema babilônio Enuma Elisch é um importante documentário sobre a origem do mundo, tal como entendia a antiga população dessa cidade situada na Mesopotâmia, atual Iraque, podendo expressar as idéias dos antigos sumeros. A cidade foi fundada por volta de 2350 a.C. (a guerra de Tróia, marco mítico importante no mundo grego, somente ocorreu em 1200 a.C aproximadamente.).

Segundo a narrativa, nas origens da vida existia um caos aquoso de duas entidades – uma masculina e outra feminina. Era o velho Apsu como um oceano primordial e Tiamat, a personificação do mar. Ela simbolizava o caos primário, ou o profundo e deu à luz os primeiros deuses cósmicos: Espaço, Tempo, Céu e Terra. Estes deuses começam a mover-se por conta própria, passam a cantar e a fazer barulho. Essa movimentação e ruído perturbam o adormecido Apsu o que leva Tiamat a resolver matar os deuses que perturbavam seu marido.

Ocorre que os deuses resolveram se defender. Marduck, o magnífico filho de Ea (deus da Sabedoria), é escolhido como líder para enfrentar as forças hostis. Tiamat deu à luz um exército inteiro de monstros chefiados por Kingu, que ela escolhe como seu marido.

Marduck solta os quatro ventos contra Tiamat, cercando-a por todos os lados. Assim ela é capturada com uma rede. Marduck usa uma espada e a desmembra, resultando desse corpo despedaçado as partes da Terra, isto é, as montanhas, os rios, etc. Mas Tiamat é imortal por ser uma deusa e os monstros do caos escapam da punição. Apenas Kingu é morto e, com seu sangue, Marduck cria a raça humana.

A partir desse ponto, o homem tem que sofrer a tensão entre caos e cosmos e a culpa resultante de seu conflito para que os deuses possam ficar em paz. E ainda se fez necessário que o homem presenteasse os deuses com oferendas de incenso e comida para sustentá-los.

Assim se encerra o conto que nos mostra a percepção da importância, desde aquela época, da formação da consciência para o homem. Como criatura deficiente, sua sobrevivência na natureza se deveu a essa capacidade, pois o mesmo não possuía armas naturais de proteção, como ocorre com os animais. Percebe-se, assim, que essa formação surge com o símbolo do herói Marduck e que os deuses cósmicos são imprescindíveis na formação e na tomada de consciência do homem, mais precisamente nos componentes Espaço, Tempo, Céu e Terra.

Estes dois últimos simbolizam internamente a capacidade ou componente feminino e masculino (Yin, Yang), eros e logos, relação e discriminação, ligação e separação, sol e lua, dia e noite, análise e holismo, pensamento e sentimento. Em termos de manifestação exterior, remete ao instinto de sobrevivência da espécie, a atividade sexual com a separação macho-fêmea. Esta questão mostra a problemática do convívio íntimo entre as pessoas, fonte de muitos problemas e histeria na época do puritanismo vitoriano, mas hoje com os valores melhor definidos, mesmo que apenas mais satisfatoriamente resolvidos. Mas certamente há mais liberdade e honestidade de propósitos.

A questão interior, a conjunção entre o consciente culturalmente masculino e o inconsciente feminino é sem dúvida de enorme importância, participando da definição sobre a qualidade de vida mental e espiritual de cada pessoa.

Estes fatores e o Espaço serão alvos de maior aprofundamento em outras oportunidades, pois a questão do Tempo torna-se aqui mais adequada e oportuna.

“A inteligência humana não faz outra coisa senão repartir a realidade em pedaços cada vez menores (análise) e escolher entre eles (possibilidade de decisão)”. (*2, p. 21). Ao fazer uma opção, a pessoa descarta outras oportunidades. Se isso for realizado incondicionalmente, abre-se o caminho para a polaridade, ou seja, a percepção de apenas alguns componentes em prejuízo da totalidade da vida. O que se escolheu fica em primeiro plano, mas a outra opção permanece no pano de fundo. Ao dividirmos assim a unidade surge a noção de tempo, essa criação da consciência, significando contemplar uma coisa e depois a outra. Essa sucessão de detalhes escolhidos estabelece o fluxo do tempo.

Esses fatores de escolha tornam-se de uma importância fundamental, pois se concentrarmos em algumas opções sistemática e compulsivamente, perderemos outras. Administrar o tempo passa a ter de caráter quase divino, tal a sua importância para a consciência. A responsabilidade precisa ser assumida dentro dos padrões da consciência individual, sob pena de perda do controle do fluxo da vida e das opções. Quando uma pessoa diz solenemente que não tem tempo, está mostrando sua incapacidade e submetendo-se a alguns pontos que, mesmo sendo importantes, estão tiranizando a atenção em prejuízo da totalidade do ser humano.

Essa situação crítica pode ser vivenciada em fases distintas na vida das pessoas. Entretanto, como um padrão de repetição, certamente trará conseqüências desagradáveis a longo prazo, muitas vezes conduzindo a processos de sofrimento e somatizações. Quem afirma não ter tempo disponível parece clamar por uma ajuda ou apoio, esquecendo-se de que uma análise do seu potencial interior para integrar a totalidade é o caminho mais natural e profícuo. As recompensas externas são importantes, mas não suficientes para que o quadro volte ao mínimo de harmonia mais realista e duradoura. Enquanto não for reconhecida de fato a situação limite a que se chegou, nada poderá ser modificado.

O estilo materialista e consumista do mundo atual colabora com esse cenário que pode levar para a depressão, a neurose e a perda do sentido de vida. A natureza não deixa passar impunes as agressões e contenções dos componentes instintivos e irracionais que participam da vida. A racionalização de que é necessário suprir a vida sempre com conquistas e trabalho exterior funciona como verdadeira agressão ao mundo inconsciente e corporal. Há sempre um preço a pagar quando deixamos de considerar as necessidades da vida, que precisa fluir mais plenamente. Não ter tempo é o mesmo que não ter vida e uma rendição a apenas alguns dos seus aspectos.

O Enuma Elisch mostra a importância universal dos “deuses” formadores da consciência que precisam ser respeitados. A sua criação, tanto para os povos antigos como para os bebês modernos, apresenta conflitos, movimento e barulho que tumultuam o estado inicial de imobilismo e dependência. Isso desperta o “mundo dos monstros” do inconsciente e os instintos devoradores. Mas surge o herói Marduck com o vento que simboliza o espírito renovador e vivificante, conseguindo jogar a sua rede e dominar a indiferenciação perigosa do mundo do inconsciente maternal. Ele faz a divisão com o uso da espada, símbolo masculino da diferenciação, da separação e da discriminação para melhor analisar e conhecer.

Os deuses têm interesses em que o homem amplie sua consciência, já que isso parece ser-lhes benéfico. O homem luta contra o caos no lugar dos deuses, esta é a sua verdadeira adoração. Assim o homem se torna ciente de que é diferente dos deuses e que não pode a eles se igualar.

A consciência traz a capacidade de refletir (do latim reflectere) e isso significa flexionar para trás, isto é, tornar-se ciente da própria condição. A criação precisa tornar-se consciente de si própria. Isso seria honrar o criador e a demanda de adorar os deuses, administrando os conflitos e estabelecendo as prioridades para a ação. E isso só é possível através do contato com o próprio interior onde estão os deuses e a centelha divina (Si-mesmo, Self).

O Tempo (um dos deuses cósmicos) precisa ser honrado, respeitado e reverenciado, o que se mostra essencial para a maior saúde psíquica que também se manifesta através da qualidade de vida. A administração do Tempo deve merecer nossa elevada prioridade se quisermos alcançar uma vivência mais plena.


Ref.
(1) JACOBY, Mario. Conferências em Zurique. 1971.
(2) DETHLEFSEN T e DAHLKE R. A Doença como Caminho. São Paulo: Cultrix, 2006.

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