19 fevereiro 2009

Nise da Silveira - Lidar com o diferente


OBS: O último artigo (Tempo 2) não foi enviado por email e está disponível aqui no blog. É importante ler na ordem correta e comparar as imagens do relógio simbolizando o tempo. Como cada um de nós está percebendo o relógio de nossas vidas? Podemos dizer que vários amigos que "correm contra o tempo" nos motivaram, mesmo sem saber, a escrever esses artigos. As notícias são sempre atualizadas no blog.

Vamos ao artigo de hoje:

"Felizmente, eu nunca convivi com gente muito ajuizada." (Nise)

A menina Nise nasceu em Maceió, Alagoas, em 15 de fevereiro de 1906, formando-se médica na Faculdade de Medicina da Bahia em 1926. Nise foi a única mulher entre os 156 homens de sua turma, destacando-se como uma das primeiras mulheres no Brasil a se formar em Medicina. Casou-se com o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira, colega de turma na faculdade, com quem conviveu até 1986, quando ele faleceu. Tendo se especializado em Psiquiatria, apontou as relações entre pobreza, desigualdade social, escassez da promoção de saúde e falta da prevenção da doença como as principais causas das patologias psiquiátricas no Brasil. Aprovada num concurso público, em 1933, começou a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha. Durante a Intentona Comunista foi presa e afastada do Serviço Público de 1936 a 1944.

Após ser anistiada, criou, em 1946, a Seção de Terapêutica Ocupacional no Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, posteriormente conhecido como Centro Psiquiátrico Pedro II. Neste momento, começou sua luta contra os agressivos métodos terapêuticos aplicados aos internos psiquiátricos, recusando-se a aplicar eletrochoques, insulinaterapia e lobotomia. A diretoria da instituição a transferiu para o setor de terapia ocupacional como meio de punição. Até aquela data, as terapias ocupacionais aplicadas eram faxina e limpeza dos aposentos hospitalares. Nise da Silveira se recusou a tratar internos desta forma e implantou ateliês de pintura e modelagem para que os pacientes pudessem expressar sua realidade simbólica pela arte e criatividade.

Nise assim definia o que esperava com as novas atividades dos internos: “O atelier de pintura me fez compreender que a principal função das atividades na terapêutica ocupacional seria criar oportunidades para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores encontrassem formas de expressão.”

Em 1949, participou com o trabalho de nove internos na exposição do MAM de São Paulo, intitulada ‘Nove artistas do Engenho de Dentro’. No ano seguinte contribuiu com inúmeras obras dos internos no I Congresso de Psiquiatria em Paris. Segundo Nise as criações artísticas eram expressões espontâneas dos pacientes: “Eu os via pintar. Via suas faces crispadas, via o ímpeto que movia suas mãos. A impressão que eu tinha era estarem eles vivenciando estados do ser inumeráveis e cada vez mais perigosos.”

Leitora e admiradora dos livros de Carl Jung e da Psicologia Analítica, Nise dedicou-se a lutar pela implantação de novos tratamentos para os doentes psiquiátricos que buscassem um maior e mais eficiente diálogo através da arte. Mais do que apenas buscar a terapia ocupacional, ela ansiava pela ‘emoção de lidar’, expressão usada por um de seus pacientes. Assim, em 1952, a partir do seu trabalho, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, um centro de estudo e de pesquisa reunindo obras produzidas nos ateliês de pintura e modelagem da instituição Psiquiátrica Pedro II.

No início da década de 50, Nise criou a Casa das Palmeiras, instituição que visava a ser uma ponte entre o Hospital psiquiátrico e a sociedade civil. Era a semente do que hoje conhecemos como Hospital Dia (implantado após grande movimento internacional da anti-psiquiatria já no final do século XX). Na Casa das Palmeiras, durante as tardes, os pacientes participavam de terapia ocupacional constituída de várias atividades. Os doentes que possuíam acompanhamento externo continuavam a medicação e os que não tinham eram medicados por psiquiatras voluntários que lá trabalhavam. A Casa das Palmeiras foi um dos símbolos do movimento da psiquiatria social no Brasil e em nada fica devendo ao movimento anti-psiquiatria do pós-guerra na Europa e Estados Unidos.

Em 1954, constatando a repetição de círculos nas pinturas de esquizofrênicos, ela escreveu ao eminente psiquiatra de Zurique, Carl Gustav Jung, relatando o fato. Sua carta foi prontamente respondida e recebeu o convite para apresentar os trabalhos dos doentes no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique (1957). A exposição A Arte e a Esquizofrenia contou com a presença, aprovação e aplauso de Jung, estudioso psiquiatra que dedicou sua vida defendendo a linguagem simbólica do inconsciente coletivo.

Da manifestação criativa e espontânea de seus pacientes, Nise da Silveira pôde continuar buscando uma maneira de comunicar-se com os esquizofrênicos. Segundo ela: “A palavra sânscrita mandala significa círculo, no sentido ordinário dessa palavra. Na esfera das práticas religiosas e em psicologia refere-se a imagens circulares que são desenhadas, pintadas, modeladas e dançadas. Como fenômeno psicológico aparece espontaneamente em sonhos, em certas situações de conflito e em casos de esquizofrenia. Freqüentemente contém uma quaternidade, ou múltiplo de quatro sob a forma de cruz, estrela, quadrado ou octógono etc. Sua ocorrência espontânea na produção de indivíduos contemporâneos permite à pesquisa psicológica fazer investigações sobre sua significação funcional. Em regra, a mandala ocorre em situações de dissociação ou desorientação psíquica. Esquizo, no grego quer dizer separado, partido, mas volta e meia apareciam círculos nos desenhos. Então, como sou atrevida, escrevi para Jung, perguntando se eram mandalas os círculos que os doentes pintavam. Levei um grande susto de felicidade quando recebi uma carta da secretária de Jung dizendo que o professor agradecia muito as mandalas. A partir daí comecei a trabalhar com os conceitos de Jung”.

A partir dos contatos em Zurique com Carl Jung e Marie Louise Von-Franz, Nise introduziu e divulgou a psicologia junguiana no Brasil através de seus conceitos e inovadoras maneiras de tratamento do doente psiquiátrico. Ela iniciou o Grupo de Estudos C. G. Jung com o objetivo de estudar, propagar e utilizar os conceitos da Psicologia Analítica. O grupo promoveu seminários, publicação da revista ‘Quatérnio’ e pesquisas na área que deram origem a exposições, documentários, simpósios, publicações, conferências e cursos sobre terapêutica ocupacional, com destaque para a importância das imagens.

Nise foi ainda pioneira na pesquisa das relações afetivas entre pacientes e animais, aos quais chamava de co-terapeutas. Percebeu que seus pacientes, ao cuidarem de um animal abandonado, criavam laços afetivos estáveis que auxiliavam na reabilitação. Ela escreveu sobre esse processo em seu livro "Gatos A Emoção de Lidar", publicado em 1998. Em todos os seus campos de atuação (Casa das Palmeira, Museu do Inconsciete, Grupos de Estudos) a presença dos co-terapeutas era certa. Os cães e gatos ajudavam na terapia e no ambiente de trabalho de maneira a fornecer o equilíbrio de forças e tendências inconscientes. A relação entre pessoas e animais é essencialmente não verbal, e era por esta via que ela procurava captar as dificuldades de seus pacientes e mobilizar a partir daí as primeiras manifestações de cura.

Nise da Silveira continuou buscando a metalinguagem (além da linguagem) utilizada pelos esquizofrênicos em suas pinturas, opondo-se aos psicanalistas que afirmavam não haver transferência na esquizofrenia. Isso porque, segundo eles, o embotamento e distanciamento afetivo do doente não permitiam tal ligação. Nise não concordava com essa argumentação e insistia que o esquizofrênico busca uma maneira de criar uma ponte afetiva com o mundo através de suas pinturas e na relação com os animais. Para ela, a Psiquiatria deveria se familiarizar com a metalinguagem do esquizofrênico a fim de entender o significado dos seus símbolos.

A teoria de Nise da Silveira sobre a terapia ocupacional era centrada na idéia de que se tratava de uma psicoterapia não verbal, podendo ser expressa com uma linguagem mais arcaica, universal e coletiva. A base teórica de sua argumentação era a Psicologia Analítica de Carl Jung. Nesse sentido, dizia Nise: “É, sobretudo, na psicologia junguiana que se pode encontrar base sólida para a compreensão da terapêutica ocupacional como psicoterapia de nível não verbal. A psique é na sua origem, diz Jung, uma função do sistema nervoso difundida em todo o corpo e cujo centro, filogeneticamente, não se achava na cabeça, porém no ventre, nas suas massas ganglionares. O plexo solar, no conceito de Jung, seria a primeira localização psíquica [...] se o plexo solar e o plexo cardíaco são centros psíquicos rudimentares, poder-se-á admitir que no curso da primeira infância traços mnêmicos de forte carga afetiva aí se acumulem. Será difícil, através do instrumento verbal, mobilizar esses afetos tão profundamente depositados e traze-los à consciência. O mais simples e o mais eficaz será o declive que a espécie humana sulcou durante milênios para exprimi-los: a dança, as representações mímicas, a pintura, a escultura, a música. O contato, a comunicação com o psicótico terá um mínimo de probabilidade de efetivar-se se pretendermos iniciá-las no nível verbal das nossas habituais relações entre pessoas. Isso só ocorrerá quando o processo de cura já se achar bastante adiantado. O médico que deseje comunicar-se e compreender o seu doente terá de partir do nível não verbal. É aí que se insere a ocupação terapêutica.”

Nise da Silveira faleceu em 30 de outubro de 1999, na cidade do Rio de Janeiro, depois de praticamente um século dedicado a seus pacientes e seguidores. Para a médica, pensadora e realizadora, “sob o impacto de afetos intensos, o inconsciente se reativa em proporções extraordinárias ameaçando submergir o ego consciente. Mas tão grande regressão ameaçando a preservação da vida provoca impulsos compensatórios que partem do próprio inconsciente, impulsos que impelem a titubeante consciência para a luz. O inconsciente é o ventre escuro que aconchega, mas também todo ventre tende a parir. A consciência nasce do inconsciente."

Em reconhecimento por seu importante trabalho, Nise da Silveira recebeu condecorações, títulos e prêmios em diferentes áreas do conhecimento: saúde, educação, arte e literatura. Foi membro fundador da Sociedade Internacional de Psicopatologia da Expressão, com sede em Paris. Seu trabalho e principalmente o exemplo de seus princípios inspiraram a criação de Museus, Centros Culturais e Instituições Psiquiátricas no Brasil e no exterior. O brilhante poeta Carlos Drummond de Andrade destaca: "Sem pretensão de formar criadores no sentido que lhes atribui a disciplina estética. Sem querer aumentar o catálogo de nossos pintores, escultores, gravadores. Nise interroga o inconsciente e consegue que dele aflorem as representações artísticas espontâneas, prova de que nem tudo em seus autores é caos ou aniquilamento. Perduram condições geradoras de uma atividade bela, a serem devidamente estudadas visando ao benefício do homem futuro, tornando-o mais transparente em suas grutas interiores.”

Site recomendado: http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/






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