12 dezembro 2008

Feliz Natal! Ótimo 2009!




I - Desejamos a todos os amigos e assinantes do blog muita saúde, paz e harmonia para comemorar esta marcante data e época. É um rito de início de um novo ciclo e esperamos que o Menino Deus encontre eco junto da eterna criança que vive em todos nós. Que ela esteja desperta, atenta e liberada para usar de suas capacidades na esfera criativa e pronta a viver plenamente os necessários momentos lúdicos.

Essa liberação encontra o momento adequado próximo ao solstício de verão, quando os dias mais longos são propícios para mais intensa vida ao sol e ar livre. É o momento também adequado para profunda reflexão sobre as etapas e as passagens com que nos defrontamos no nosso caminho. Muita energia, equilíbrio e harmonia para todos.



II - Nosso Livro: MITOLOGIA E VIVÊNCAS HUMANAS


Já está disponível para as livrarias. A aquisição pode ser feita com remessa pelo correio pelo “Francisco” da Livraria Palmieri (endereço de email na barra esquerda do blog). É um livro para leitura e também para consulta, pois apresenta a Mitologia Grega de forma ordenada e comentada em termos de vivências humanas de todas as épocas. A contextualização do surgimento dos mitos, origens, povos e sincretismos são muito importantes, como também a narrativa final do livro que focaliza a importante transição sinalizada pelo mito de Édipo. A visão da Psicologia Analítica sobre narcisismo também é um ponto marcante.



III – Artigos no Blog


Faremos um recesso nesse período de comemorações, retornando até meados de janeiro de 2009 com novos artigos e contando com participação, sugestões e críticas dos amigos e assinantes.

Alguns artigos são mais densos que outros. Abordamos temas que podem ser complexos, mas são desenvolvidos de forma a facilitar ao máximo possível a compreensão pelo leitor não especialista do assunto. A finalidade é trazer certa reflexão e por vezes muitos conteúdos vão se relacionando e convergindo mais à frente com a apresentação de outros artigos.


IV – Cadastro no Blog


É muito importante para sabermos da participação real das pessoas. Estimula a continuidade dos trabalhos e mostra que a energia circula no grupo.


V – Curso de Férias


Ótima oportunidade fornecida pela Universidade Estácio de Sá em janeiro/fevereiro 2009. São apenas 4 aulas com assuntos muito interessantes. Ver a participação de Bosco, na barra esquerda do blog, ministrando disciplinas sobre Psicologia Analítica e também Sonhos.


VI – Grupos de Estudos 2009


Também indicados na barra esquerda do Blog. Oportunidade para aprender, discutir, refletir sobre a Mitologia e a Psicologia Analítica e suas interações na vida cotidiana. São manhãs, tardes ou noites plenas de satisfação, possibilidades de ampliar o auto-conhecimento, tudo isso com pequenos grupos e orientação adequada. São atividades muito prazerosas para quem participa. Faça contato conosco: inscreva-se!!!

09 dezembro 2008

O galo meteorologista do Carmélio


Os mistérios das Minas foram decantados pelo sensível ficcionista Guimarães Rosa. Quanto mais ele cresceu para o mundo mais se aprofundou na sua própria terra, conhecendo sua gente e seus campos ilimitados e Gerais.

“...Mas eu queria que a madrugada viesse. Dia quente, noite fria... eu dormia logo. Sonhava. Só sonho, mal ou bem, livrado. Eu tinha uma lua recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros pássaros... Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um bem-te-vi só... - Gente! Não se acha até que ele é sempre um, em mesmo?... E permaneci duvidando que seria – que era um bem-te-vi, exato, perseguindo minha vida em vez, me acusando de más-horas que eu ainda não tinha procedido. Até hoje é assim...” (*1, p. 30).

Coisas de Minas, onde existe um jeito especial de perceber e se relacionar com o mundo. O detalhe pode ganhar importância vital e os grandes fatos vistos com certa despretensão. Depende do momento, da inspiração, do vento, da natureza em volta. Tudo é percebido na doce mistura de sensação e intuição.

Sim, o mineiro autêntico se aproxima do objeto para percebê-lo com os cinco sentidos. Em cada situação ele parece ver, tocar, ouvir, cheirar e degustar o objeto da sua (des)atenção. Depois ele se afasta calmamente e começa a apreciar à distância. Tudo isso pode ser muito rápido. Ou não, depende da ocasião. E assim ele faz uma avaliação mais geral, deixa fluir sua intuição e tenta perceber de onde veio tudo aquilo e qual é o seu destino.

Avaliação de mineiro é assim – é por inteiro, no total. E nem por isso ele vai gostar de dizer sua opinião. Essa é só dele, a princípio. E assim ele vai vivendo junto com a natureza, integrando-se com os seus detalhes.

E você já viu um mineiro jogando truco? Aí ocorre o refinamento das artes teatrais, mostrando as inversões mais absurdas. Daquela carinha de aparente necessidade de auxílio surge a jogada final surpreendente e vitoriosa. Assim o jogo vira festa, vale subir na cadeira e até na mesa, numa euforia gritante e desequilibrada.

Meu amigo Carmélio era mestre nessas pelejas. Se deixassem que ele embaralhasse as cartas, podendo vê-las enquanto as manuseava, saberia a ordem completa à medida que o jogo fosse transcorrendo. Como? Não sei. Era assim. Ele era pessoa simples, sem muitos estudos, dava aulas de sensibilidade e sintonia com o mundo. Estava à frente do seu tempo, adorava desafios, novidades e trabalho.

De vez em quando eu ia até sua fazenda para usufruir do bom papo e calor humano, tudo isso com a desculpa de uma rápida pescaria nas lagoas provisórias das águas do Rio das Mortes. Essa era a fazenda Santa Lúcia, orgulho da família. Mas de certa vez ficamos restritos ao interior da casa-sede até não mais poder, pois a chuva não dava trégua. Depois de algumas rodadas de truco, divertindo-se a valer, mesmo sem deixar isso muito claro, ele se entusiasmou: “- Pessoal, vamos fechar o jogo e preparar a rede. A chuva já está passando... a pescaria será muito boa!”

A afirmativa categórica surpreendeu todo o grupo de amigos. Questionado, Carmélio perguntou se não ouvimos o canto do galo. Cada um vasculhou sua memória de curto e médio prazo e até nos cantos mais profundos. Alguns lembraram de ter ouvido a manifestação do rei do terreiro. E aí, o anfitrião, pescador e truqueiro, afirmou: “Se o galo canta desse jeito é porque a chuva está indo embora!”

Dez minutos após estávamos de saída, eufóricos para mais uma pescaria bem sucedida e plena de alegrias com o pesado troféu de lambaris, traíras, acarás e outros pequenos nadadores. E como bônus a mineirice da paisagem com coqueiros, rio, córrego, montanhas e os trilhos da “Maria-fumaça”, que cruzavam a região beira-rio da fazenda, onde se encontram os dois rios das Mortes: grande e pequeno. Um cenário encantador.

Muitos anos se passaram após essas marcantes vivências. O que fica registrado com mais energia na nossa memória é aquilo que toca nas profundezas do nosso ser e no nosso coração. Essas são as marcas que nos acompanham pelo resto da vida.

O prosseguir por vezes traz surpresas e ligações com o passado (e o futuro!). Vieram assim os estudos da Psicologia Analítica que mostram as ligações de tudo que é humano e universal. Muitos aspectos ligam todos os homens como se a humanidade fosse realmente uma só família. É encantador verificar os laços humanos na mitologia, artes, culturas, religiões, sonhos, folclore – tudo isso nos conduz ao mesmo rio na busca do mar comum a todos.

Jung encontrou forte componente histórico na Alquimia para ilustrar suas concepções sobre a Psicologia Analítica. É um estudo complexo e que mostra a sabedoria que esteve sempre disponível na história da humanidade, mostrando que a Psicologia Analítica tem seus paralelos e bases com o desenvolvimento do conhecimento do homem. Assim Jung valorizou imensamente o trabalho de Paracelso (1493-1541, médico, alquimista, físico e astrólogo) e cita algumas concepções (*2, p. 129-131):

A idéia das centelhas (scintillae) como sementes de luz que provinham do caos e da mente humana, estando assim presentes tanto no exterior como no interior de cada pessoa. Essa centelha de luz esclarece e ilumina o ser humano nos momentos difíceis e obscuros, ou seja, ele tem esse potencial criativo. E todas as coisas da natureza trazem, em níveis diferentes, essa centelha para a realização da vida. A sua percepção englobava a certeza de que tudo na natureza, incluindo os animais, tinham um certo “brilho” que dignificava sua própria existência.

No que diz respeito aos homens, esta visão pode ser comparada com a versão filosófica dos arché (a priori) das imagens eternas de Platão. Desse mundo das idéias vem a capacidade de verificação das “cópias” no mundo sensível e dos objetos. Esta noção mostra que os arquétipos possuem em si certo brilho ou semelhança com a consciência, realçando os conceitos de lúmen (relativo à luz) e númen (como se fosse algo mais brilhante que a luz, ou seja, percebido como divino). Estas centelhas surgem como inspirações e têm a propriedade de poder ampliar a consciência, trazendo assim novas possibilidades de vivências, enriquecendo a existência do ser humano. Cita Paracelso: “E do mesmo modo como no homem não pode existir nada sem o númen divino, assim também nada pode existir no homem sem o lúmen natural. São estas duas únicas partes: o númen e o lúmen que tornam o homem perfeito.” O assunto é complexo e ao mesmo tempo encantador.

Com os significados e menções ao longo da história desses termos por vários estudiosos, Jung foi verificando o embasamento para suas concepções práticas dos arquétipos e do Si-mesmo. Ele percebia nas pessoas a dinâmica entre o mundo interior e a vida prática das pessoas.

Prossegue Paracelso: “a estrela deseja levar o homem para a grande sabedoria... para que ele apareça maravilhoso na luz da natureza, e os mistérios da maravilhosa obra de Deus sejam descobertos e revelados em sua grandeza.” Ele compara cada homem com um astro e é como se o homem extraísse sua luz de uma estrela maior, sendo necessário que cada um venha a nascer para essa estrela. Menção parecida é feita por Mateus 5, 14: “Vós sois a luz do mundo.”

É importante observar que o homem é elevado assim a uma condição de um astro que recebe e proporciona luz, pois ele é “dotado com a luz perfeita da natureza”, sendo este o tesouro que encerra dentro de si.

Nesta concepção alquímica, a luz da natureza está sempre presente e tudo engloba. “Os animais também possuem a luz natural que é um ‘espírito inato.’” Como ilustração desse estado de participação...... “como os galos que anunciam com seu canto as futuras condições meteorológicas....”

Nesse ponto da leitura, sou inclinado a fechar o livro e os olhos. Há algo de humano compartilhado e sem as delimitações de tempo, espaço e cultura. Carmélio e seu galo meteorologista interagiam porque os canais estavam interligados e disponíveis naquela pessoa sintonizada com as coisas do mundo. Sua percepção através de outras funções que não o pensamento e o sentimento permitiam esse contato maior e mais amplo com a natureza assim disponível e iluminada por essa luz interior.

Certamente aquele amigo não teve contato algum com tratados alquímicos ou filosóficos, mas trazia dentro de si, cultivada e muito acesa, a luz e o númen inerentes ao ser humano. E que muitas vezes são desprezados, mas que podem ser despertados e liberados por um galo meteorologista!

A linguagem da natureza pode ser compreendida pelas pessoas sensíveis. Como disse Guimarães Rosa: “Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria.” O poeta cresceu em direção ao macrocosmo e retornou para a vivência também do seu microcosmo e do próprio interior.


Ref.
(1). GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
(2) JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2000. O.C. vol VIII/2.

08 dezembro 2008

A origem do Vento



O conhecimento do mundo à nossa volta pressupõe certa vontade, atitude e método. Como cada indivíduo apresenta diferentes graus dessas disposições, pode-se concluir que cada um percebe os fatos ao seu modo. Entretanto, alguns requisitos são importantes para que possamos formular idéias com base na experiência, mesmo que ela seja subjetiva. Essa atitude de priorizar os acontecimentos na sua prática e observação, tratando com um pouco mais de cautela a teoria, o dogmatismo e o metodismo tem nome: empirismo.

Mesmo que você já tenha ouvido dizer que empírico é algo baseado na “tentativa e erro”, sem metodologia científica, prefira a versão apontada acima. Muitas pessoas fazem suas observações naturalmente, tentando apreender os fenômenos que ocorrem à sua volta, de forma a ultrapassar a tentação de limitá-los nas suas causas, fazendo a clássica e muitas vezes única pergunta: “Por quê?”

A apreensão do que ocorre à nossa volta não poderia se limitar a esta única pergunta. Muitas vezes é importante ampliarmos o leque de questões, começando com “para quê?” e também “como isso ocorre?” E podemos ir catalogando, memorizando, observando tanto nos detalhes como nos aspectos gerais.

Jung agia dessa forma quando começou a trabalhar com doentes mentais no hospital psiquiátrico de Zurique (Burghölsly) no raiar do século XX, após concluir o curso de medicina. Naquela época não se dava ouvidos para os delírios desses pacientes, pois o meio médico julgava-os portadores de uma “demência precoce”. A equipe coordenada por Bleuler criou nova palavra para citar e definir a patologia: esquizofrenia (cisão + cérebro), passando a perceber o problema não como uma deterioração ou envelhecimento precoce do cérebro e sim uma separação ou algo que não funcionava de forma organizada e coordenada. O doente perdia o contato com a realidade, vivendo num mundo imaginário que para si próprio criava.

Nesse contexto, Jung começou a se interessar por mitologia, pois dava atenção ao discurso dos seus pacientes mesmo que não apresentassem certa lógica. O médico começou a perceber a importância dos conteúdos dos delírios que traziam motivos que se repetiam. Alguns temas também foram observados em sonhos apresentados em diferentes culturas, religiões, artes, contos de fada, folclore e outras manifestações humanas.

Jung agia como bom observador dos fenômenos à sua volta. Atento, circulando pelos corredores em 1906, foi abordado por um paciente que estava internado fazia muitos anos. Esta situação perdurava desde sua juventude e o mesmo não era especialmente bem dotado, apresentando delírios megalomaníacos e normalmente de natureza religiosa. O paciente tinha sido um pequeno comerciário e não desenvolveu sua escolaridade além do ensino médio.

Pois bem, ele estava junto a uma janela e convidou Jung para que participasse da sua visão. Muito compenetrado, sugeriu que o médico piscasse em direção ao Sol, balançando a cabeça. Como um sábio místico ensinando ao seu discípulo, esclareceu que assim seria visto algo muito importante. Com sensibilidade, Jung perguntou-lhe o que estava vendo, recebendo como resposta: “O senhor está vendo o pênis do Sol – quando movo a cabeça de um lado para o outro ele também se move e esta é a origem do vento”. Jung nada compreendeu dessa estranha idéia, mas, como empirista, tratou de anotá-la.

Quatro anos mais tarde, estudando mitologia, Jung descobriu um livro de Albrecht Dieterich lançado em 1903 (o paciente fora hospitalizado algum tempo antes) que esclarecia a fantasia. O autor era conhecido filólogo que pesquisara um papiro grego, mostrando texto com a prescrição religiosa para se fazer invocações a Mitra. Essa entidade era uma divindade solar persa de uma religião de mistérios surgida na época helenística (provavelmente no séc II a.C. que se difundiu nos séculos seguintes no império romano). As instruções do texto eram:

“Procura nos raios a respiração, inspira três vezes tão fortemente quanto puderes e sentir-te-ás erguido e caminhando para o alto, de forma que acreditarás estar no meio de região aérea... O caminho dos deuses visíveis aparecerá através do Sol, o Deus, meu pai; do mesmo modo, tornar-se-á visível também o assim chamado tubo, a origem do vento propiciatório. Pois verás pendente do disco solar algo semelhante a um tubo. E rumo às regiões do oeste, um contínuo vento leste; se o outro vento prevalecer em direção ao leste, verás, de modo semelhante, a face movendo-se nas direções do vento”.

Esse acontecimento não pode ser creditado a qualquer coincidência, mesmo se considerarmos que os motivos de Sol, Deus, vento e espírito são representações coletivas mostradas em várias religiões, incluindo os mistérios de Ísis no antigo Egito. Por serem humanos e gerais, esses temas também foram mostrados em pinturas medievais. Como mencionou Jung (*1, par 109), é fora de cogitação que o paciente tenha tido algum contato com o papiro ou a obra do filólogo. Afinal, “o paciente foi declarado doente mental aos vinte anos de idade. Nunca viajara. Em sua cidade natal, Zurique, não há qualquer galeria de arte pública que expusesse um tal quadro.” Ou qualquer quadro pintado na idade média.

Para Jung esse fato não prova a existência de um arquétipo ou do inconsciente coletivo, mas foi uma experiência marcante no desenvolvimento desses conceitos. Ele sistematizou o trabalho com os símbolos, percebendo que muitos deles podem ser reconhecidos como fenômenos típicos. Eles podiam ser isolados com clareza através de exames de uma série de sonhos e do seu próprio desenvolvimento dentro da série. O método comparativo de observação e trabalho foi adotado baseado nas observações práticas. A riqueza do material colhido era cientificamente instigante, prestando-se a um estudo comparativo e de acompanhamento das variações e modificações dos motivos mitológicos.

Desde que Freud mencionou os “resíduos arcaicos”, apenas Jung desenvolveu estudos nessa direção, chegando aos importantes conceitos mencionados. Eles exigem tempo e disposição para tentarmos assimilar toda a sua magnitude.

É uma boa técnica ir se aproximando e acostumando com esses termos calmamente, pois a tentativa de uma definição teórica, científica, linear e simplificada se mostrará insuficiente. A compreensão do que é humano ultrapassa o campo das teorias e pode muito bem ser observado na vida prática – tanto individual como coletiva.

De onde o paciente de Burghölsly tirou a imagem do falo solar? É como se a sua psique mostrasse fragmentos de conteúdos soltos participantes dos seus delírios, mas que certamente estavam na no seu interior por se tratar de uma mente humana. Mas como alertou Jung (*2, par.224), “Esta observação não ficou isolada: naturalmente não se trata de idéias hereditárias, e sim de uma predisposição inata para a criação de fantasias paralelas, de estruturas idênticas, universais, da psique, que mais tarde chamei de inconsciente coletivo. Dei a estas estruturas o nome de arquétipos”.

Os arquétipos seriam os elementos básicos do inconsciente coletivo, estrutura que recebemos ao nascer da mesma forma que o corpo biológico – espelhando toda a experiência anterior da humanidade tanto em termos de corpo como de psique. Por que apenas o corpo contaria a sua história desde os primórdios como se fosse um museu ambulante de órgãos?

A menção de corpo e psique lembra imediatamente a forte ligação entre arquétipo e instinto. Cada um se prontificando para as ações humanas, tanto corporais como psicológicas.


Ref.
(1). JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. O.c. vol. IX/1.
(2). JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 1999. O.c. vol. V.

04 dezembro 2008

Ponto de Mutação



Nesse livro (*1), o autor Fritjof Capra mostra a maneira como a Física moderna quebrou paradigmas em vários campos do conhecimento: Medicina, Psicologia, Biologia, Economia. O livro é leitura obrigatória para todos aqueles que desejam um conhecimento atualizado sobre a nova maneira de fazer ciência. No capítulo 11: “Jornadas para além do espaço e do tempo”, Capra faz um apanhado da Psicologia moderna desde Freud até o advento da Psicologia Transpessoal nos Estados Unidos em meados de 1960. É interessante verificar alguns comentários sobre a parte do capítulo em que o autor disserta sobre a Psicologia Analítica e os conceitos junguianos desde que foram enunciados.

Em uma de suas principais obras, Aion (*2), Carl G. Jung refere-se aos conceitos psicológicos e os físicos da seguinte forma:
"Mais cedo ou mais tarde, a física e a psicologia do inconsciente se aproximarão cada vez mais, já que ambas, inde­pendentemente uma da outra e a partir de direções opostas, avan­çam para território transcendente, (....) A psique não pode ser totalmente diferente da matéria, pois como seria possível de outro modo movimentar a matéria? E a matéria não pode ser alheia à psique, pois de que outro modo poderia a matéria produzir a psique? Psique e matéria existem no mesmo mundo, e cada uma compartilha da outra, pois do contrário qualquer ação recíproca seria impossível. Portanto, se a pesquisa pudesse avançar o suficiente, chegaríamos a um acordo final entre os conceitos físicos e psicológicos. Nossas tentativas atuais podem ser arrojadas, mas acredito que estejam no rumo certo"

O médico e pesquisador Jung emitiu diversos conceitos que nem sempre foram bem compreendidos por seus contemporâneos, passando posteriormente a serem valorizados e estudados com o avanço e as descobertas da física moderna. Grande parte de suas conceituações vão do começo até meados do século XX. Durante algum tempo, pela incompreensão de seus conceitos, foi chamado de esotérico, místico e religioso. Somente no final do século XX e começo do século XXI, o meio científico começou a vê-lo como gênio e outras denominações pertinentes àquelas pessoas que conseguem montar uma obra coerente e bem estruturada, porém adiante de seu tempo. Sua obra não está acabada, pois deixou em aberto várias questões para serem pesquisadas e complementadas, mas oferece amplo material para estudo e prática. Atualmente podemos destacar algumas de suas conceituações que já podem ser explicadas pela física e outras disciplinas.

Numa abordagem holística de saúde, Jung propôs a doença como um fenômeno mental que acarretava uma enfermidade física ou psicológica. Em seus estudos, ele foi além do paradigma mecanicista do começo do século XX. Ele foi o precursor em fazer a equivalência da psicologia com a física moderna e a teoria geral dos sistemas, quando estes nem haviam sido enunciados. Desde a mitologia grega, na cidade de Epidauro, Asclépio filho do deus Apolo, praticava e ensinava a arte médica vendo o homem como uma entidade integrada pelo corpo físico, mental e sociocultural. Jung privilegiou a visão sistêmica, compreendendo a psique em sua forma total nas relações. Ele percebia a psique como um sistema dinâmico auto-regulador, funcionando por alterações visando ao equilíbrio entre opostos. As idéias de Jung sobre a psique humana e a doença mental foram inovadoras e bastante modernas para o seu tempo. Para ele, “a mente é como um sis­tema auto-regulador ou, como diríamos hoje, auto-organizador, e a neurose, um processo pelo qual esse sistema tenta superar várias obstruções que o impedem de funcionar como um todo integrado” (*1, p. 354).

Concebeu ainda a energia psíquica como a força motriz para promover a dinâmica da vida. Descreveu esta energia com a linguagem da física clássica, mas a dinâmica era o que hoje os físicos descrevem como sistêmica. Pela Física moderna, o universo passa a ser visto como um todo dinâmico, indivisível, cujas partes estão inter-relacionadas. Assim, homem e natureza fazem parte da anima mundi, apresentando inter-relação em cada ato.

O conceito de Jung de inconsciente coletivo foi e ainda é o elemento que distingue sua psicologia de todos os outros teóricos. Para o autor o inconsciente coletivo mantém um vínculo entre o homem e a humanidade, ou ainda, entre o indivíduo e o cosmo. Esta conceituação está em pleno acordo com uma concep­ção sistêmica da mente, além de apresentar bastante semelhança com os fenômenos subatômicos descritos pelos físicos. Para Jung o inconsciente coletivo é constituído de arquétipos, que são padrões formados pelas experiências remotas da humanidade, estando as mesmas presentes pelos sonhos, mitos e contos de fadas. Para ele os arquétipos são “formas sem conteúdo, representando meramente a possibilidade de um tipo de percepção e ação”.

Devido ao profundo interesse por numerosas áreas de conhecimento, Jung estudou variados temas entre eles a religiosidade como ponto de transcendência do homem. Sua vasta experiência e pesquisa no campo religioso e espiritual o convenceu acerca da realidade da dimensão espiritual na psique humana. Ele verificou através da história das civilizações que religião e mitologia são fontes inesgotáveis de informações sobre a constituição dos arquétipos. “A orientação espiritual de Jung deu-lhe uma ampla perspectiva da ciência e do conhecimento racional. Ele chegou à conclusão de que a abordagem racional é meramente uma das numerosas abor­dagens possíveis, sendo que todas elas resultam em diferentes, mas igualmente válidas descrições da realidade. Em sua teoria dos tipos psicológicos, Jung identificou quatro funções características da psique - sensação, pensamento, sentimento e intuição -, que se mani­festam em diferentes graus em cada indivíduo”. (*1, p. 354).

O termo “sincronicidade” foi usado por Jung para definir a ocorrência de padrões psicológicos com ligação não-causal. O termo "sincronicidade" foi usado para as conexões não-causais entre as imagens simbólicas do mundo psíquico simultâneas com os eventos ocorridos na realidade externa. Trinta anos depois desta proposta de Jung, a física corroborou estas afirmações. “A noção de ordem ou, mais precisamente, de um estado de conexão ordenada surgiu recentemente como um conceito central na física das partículas, e os físicos, hoje, estão fazendo uma distinção entre conexões causais (ou "locais") e não­-causais (ou "não-locais"). Ao mesmo tempo, modelos de matéria e modelos mentais são cada vez mais reconhecidos como reflexos recíprocos, o que sugere que o estudo da ordem, tanto no estado de conexão causal quanto no não-causal, pode muito bem ser um caminho eficaz para explorar as relações entre as esferas interna e externa”. (*1, p. 354).

No trabalho analítico, ele recomendava ao terapeuta estar atento a si mesmo, verificando suas reações inconscientes diante do paciente. Os sonhos do paciente e do terapeuta devem ter a mesma atenção. Nada mais contemporâneo que a participação do observador no fenômeno observado. Só que esta constatação só foi verificada muito tempo depois que Jung propôs suas idéias. A teoria quântica mudou bastante a concepção clássica da ciência ao revelar o papel crucial da consciência do observador no processo de observação e ao invalidar, assim, a idéia de uma descri­ção objetiva da natureza.

Ao escrever sua autobiografia, Jung propôs: "Em minha opinião, ao lidarmos com indivíduos, somente a com­preensão individual servirá. Necessitamos de uma linguagem dife­rente para cada paciente. Numa análise, posso ser ouvido falando o dialeto adleriano, numa outra, o freudiano". Com efeito, o mes­mo paciente passa freqüentemente por diferentes fases no transcurso da terapia, cada uma caracterizada por diferentes sintomas e um diferente senso de identidade. Os terapeutas sabem que diferentes pacientes exibirão diferentes sintomas que, com freqüência, requerem distintas ter­minologias e, por conseguinte, diferentes enfoques terapêuticos.

A idéia de que o organismo humano possui uma tendência inerente para curar-se e para evoluir é uma questão que, desde o centauro Quíron, na Grécia antiga, era visto. Entre os conceitos junguianos, esta máxima é mantida. O paciente é guiado pelo terapeuta para o encontro com seu próprio curador interno. Para Jung, a terapia era um encontro entre seres humanos, onde além do diálogo consciente, havia um intenso diálogo inconsciente. Para que tal fato ocorresse era preciso um abaixamento de atitudes conscientes e defesas visando acessar o “curador ferido” que existe em cada ser. “Talvez o primeiro a perceber a psicotera­pia desse modo tenha sido Jung, que enfatizou vigorosamente a influência mútua entre terapeuta e cliente e comparou esse rela­cionamento com uma simbiose a química”. (* 1, p. 375/376).

Jung, mesmo sem poder explicar alguns de seus conceitos de maneira “científica”, teve a coragem de mantê-los, desafiando o espírito positivista que só acreditava naquilo que podia ser comprovado. Com a evolução filosófica e as descobertas científicas a partir dos anos cinqüenta no século XX, muitas teorias e conceituações puderam ser comprovadas por analogias com outras descobertas. Só agora, com o reconhecimento da compatibilidade e da coerência entre a psicologia jun­guiana e a ciência moderna é que as idéias de Jung poderão ser melhor desvendadas acerca do inconsciente humano e sua dinâ­mica, bem como da natureza da doença mental e o processo psicoterapêutico.


Ref.
(1) CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 1982.
(2) JUNG, C.G.. AION – Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988.

01 dezembro 2008

Dois filmes e Eros (2)


(continuação)

A questão do amor abrange aspectos amplos e diferenciados. O amor romântico se manifesta universalmente na paixão e complementação entre duas pessoas. Já nascemos com o signo da separação (cordão umbilical, mãe, pai, e fundamentalmente o surgimento do eu (ego) a partir da separação do Si-mesmo ou Self) . Assim, nossa sina torna-se a busca e a tentativa de complementação do que nos falta. Somos fugidores ou caçadores de nós mesmos, dependendo das nossas prioridades e circunstâncias.

O encontro amoroso do parceiro ideal é movido pela paixão desenfreada que surge através do amor. Mas da mesma forma que ele chega inesperadamente pode desaparecer, confirmando apenas o estado de paixão e não de puro amor. Mas não tratamos apenas da manifestação desse tipo de amor, pois as pessoas sentem amor pelos pais, pelos filhos, pela profissão, pelas artes, pelo país, e o amor maior por Deus e pela vida.

Esse amor maior e autêntico é aquele que permite as transformações e o próprio processo de individuação. Ele é veiculado pela alma que, partindo do contato interno numinoso (mais que luminoso, mágico e até mesmo divino) traz o amor pela própria vida e a busca do seu sentido. Esse encontro ocorre no somatório das pequenas e grandes realizações, incluindo as pequenas coisas do dia-a-dia e atingindo as grandes conquistas pessoais de todas as categorias.

O amor é a ligação plena com a vida, é um estado de elevação espiritual. E aqui não tratamos de algo apenas em teoria, pois se não temos uma comprovação científica dos efeitos do amor, percebemos seus resultados práticos na qualidade de vida que proporciona. O mesmo ocorre com relação ao Si-mesmo (Self), como menciona Von Franz (*1, p. 212): “No decorrer dos tempos, os homens, por intuição, estiveram sempre conscientes desse centro (organizador da psique). Os gregos o chamavam de daimon, o interior do homem; no Egito ele estava expresso no conceito de alma-Ba; e os romanos adoravam-no como o ‘gênio’ inato em cada indivíduo. Em sociedades mais primitivas imaginavam-no muitas vezes como um espírito protetor, encarnado em um animal ou um fetiche.”

Entramos em contato com o Si-mesmo pela nossa alma e ela é aprimorada através do sentimento do amor. Dessa forma, só podemos amar verdadeiramente uma outra pessoa se tivermos amor com a nossa própria alma e sensibilidade interior.

Von Franz ainda menciona o contato do eu com o Si-mesmo (centro da nossa psique, ou seja, consciente e inconsciente, o que conhecemos e o que não percebemos ainda): “Ouvindo-o, tornamo-nos seres humanos mais completos. O processo acontece como se o eu (ego) não tivesse sido produzido pela natureza para seguir ilimitadamente os seus próprios impulsos arbitrários, e sim para ajudar a realizar, verdadeiramente, a totalidade da psique. É o eu que ilumina o sistema inteiro, permitindo que ganhe consciência e, portanto, que se torne realizado. Se, por exemplo, possuo algum dom artístico de que meu eu não está consciente, este talento não se desenvolve e é como se fosse inexistente. Só posso trazê-lo à realidade se meu eu o notar. A totalidade inata, mas escondida, da psique, não é a mesma coisa que uma totalidade plenamente realizada e vivida.”

O amor é a ligação de cada um com a sua própria vida e com as outras pessoas e coisas, culminando com o próprio mundo em que vive. Outros tipos de ligação também ocorrem e os antigos gregos já estavam atentos, como nos mostra claramente o mito de Eros e Psiquê (MITOLOGIA E VIVÊNCIAS HUMANAS). A narrativa nos leva a refletir e a questionar sobre as aventuras do filho de deuses com uma filha de mortais. É importante esclarecer que Psiquê era vista como alma pelos gregos, ou seja, já havia a percepção de uma vida interior. Os desafios e a união desse casal primordial apontam para as potencialidades do amor.

Esse assunto também foi tratado por Platão (O banquete): “Assim, pois, eu afirmo que o Amor é dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após sua morte.”

Platão também esclarece Amor é um requisito para a existência de Afrodite. Existem duas figuras dessa divindade:Urânia ou Celeste e Pandemia ou popular. Assim podemos compreender que há dois tipos de amor: um é mais relacionado com enfoque nos sentidos e na sensualidade. Poderíamos então ligar o amor divino e celeste ao verdadeiro e grande amor pelo sentido maior da vida. Os amores humanos autênticos são decorrentes desse último e não apenas simples interesses de posse ligados ao eu (ego). Esse é o Amor que se inicia com maiúscula para Platão, conforme menciona o editor (*2, p. XXIII): “A construção do conhecimento constitui, assim, no platonismo, uma conjugação de intelecto e emoção, de razão e vontade: a episteme (estudo das ciências e apreciar seu valor para o espírito humano) é fruto de inteligência e Amor.” O amor romântico pode realmente ser a manifestação autêntica desse amor maior.

Platão é um filósofo por vezes mal compreendido, sendo muito mencionado apenas por parte de suas idéias. Reduzir sua noção de amor para algo apenas teórico e abstrato é interpretá-lo parcialmente. Ele apresenta o início de uma consciência reflexiva e a possibilidade de diálogo com a própria alma. Suas obras mostram a ascensão do mundo sensível para o mundo das idéias onde estaria a verdadeira realidade. Mas alerta que a ascensão é feita gradativamente e que o amor dos corpos engendra a imortalidade e a virtude, ou seja, a beleza pela sabedoria começa nas formas concretas e depois dessa percepção trata-se de continuar na ascensão para o mundo das idéias.

Se logos é o conhecimento discursivo e argumentativo, sua noção de “logos erótico” mostra o amor platônico à sabedoria que é atingida com a busca e a ascensão. O motor de tudo isso é o “logos erótico” que começa pelos “belos corpos”, não dispensa essa etapa empírica e concreta, mas continua ascendendo, pois Eros é o desejo de saber.

Estará mais apto para viver um grande amor a pessoa que estiver construindo o encontro interior entre logos e Eros. Quem estiver assim mais inteiro e na construção da sua totalidade estará em condições de não exigir do outro aquilo que ainda não possui. As paixões passageiras constituem uma busca da complementação momentânea do que falta. Entretanto, mesmo com a alternância de diversificadas fases, um amor autêntico pode muito bem ser vivido, funcionando como energia no processo de desenvolvimento individual dos envolvidos.

Não apenas Platão é mais complexo do que parece, mas o mesmo ocorre com muitos outros pensadores e com o sentimento de amor. Este se apresenta de muitas formas, mas é um dos eixos que também move o mundo. A questão do poder muitas vezes prevalece, mas as duas questões são inerentes ao ser humano. Muitas vezes é difícil perceber qual deles está predominando em determinada situação, mas os desdobramentos deixam claro as motivações e o valor que as pessoas usaram para suas ações.

O prosseguir mostra a ascensão ou estagnação de cada etapa. Enquanto isso as pessoas misturam amores e poderes.



Ref.
(1) JUNG, C. G. et al., O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
(2) Coleção Os Pensadores. Platão. Abril Cultural, 1979.

28 novembro 2008

Dois filmes e Eros (1)



O rei Menelau, de Esparta, faz a narrativa dos fatos marcantes no filme HELENA DE TRÓIA. Se ele foi um personagem menor, sai engrandecido no final por sua atitude junto a Helena.

O filme realça os pontos de vista a partir do amor e do poder. Afinal, qual foi o motivo dessa guerra (mítica), que foi considerada a maior da história? Essa dúvida é alimentada no decorrer da narrativa e os dois motivos citados são de enorme importância para as tomadas de posição nas batalhas e na vida como um todo. As pessoas, tanto naquela época como hoje, enfrentam os mesmos problemas compartilhados e humanos em geral, ou seja, arquetípicos.

Amor e poder não constituem pólos de um mesmo eixo, pois um não é o contrário do outro. Poderíamos situar o ódio como oposição ao amor, assim como a subserviência ao destino em relação ao impulso do poder. Entretanto amor e poder são excludentes, onde um está presente normalmente o outro se afasta. Quem ama não controla e muito menos domina. As pessoas mostram isso nas suas ações diárias, pois aquele que está preocupado apenas com sua ascensão social ou profissional termina por colocar as outras questões humanas em planos secundários.

A guerra de Tróia simboliza a primeira metade da vida com os desafios das conquistas (poder) e da descoberta do amor. Qual prevalecerá? Qual deles será o mais relevante para nossas vidas individuais? Os dois aspectos são importantes, mas normalmente há a predominância de um deles.

Menelau conta que seu irmão Agamnênon (Micenas), o mais forte dos gregos, estava com a vida impregnada pela busca do poder. O rei de Esparta citado por Homero menciona:

“A guerra é travada entre nações. Mas são os seres humanos que pagam por ela. A única coisa que nos resta é o amor, a única e verdadeira dádiva dos deuses. É através do amor que esperamos e rezamos para que os deuses nos dêem a paz.”

Menelau surpreende Helena, já preparada para morrer, ao poupar sua vida. Mas como exterminá-la brutalmente se ele vivia em função do seu amor? Como resposta à pergunta sobre o que iria fazer após a guerra, Helena responde: “Vou seguir”. Depois de tantas tragédias e desgraças na sua vida, ela simplesmente se dispunha a..... seguir em frente!

Afinal, o que é o amor e como ele se manifesta? Quando falamos desse assunto estamos nos referindo a EROS de modo que o tema precisa então ser melhor elaborado, o que veremos em próximos artigos. Enquanto isso ficamos atentos à atuação desse DAIMON (sentido socrático da palavra como guia, inspirador...) chamado pelos romanos de Cupido. Segundo Platão, Diotima ensinou a Sócrates que Eros era um daimon...

Outro filme interessante sobre o tema é DON JUAN DE MARCO, de 1995, produzido por Francis Ford Coppola, com Marlon Brando, Johnny Depp, Faye Dunaway. “É a história de um homem que pensava ser o maior amante do mundo...”

“Um rapaz usando uma máscara negra ameaça se jogar do alto de um prédio. O jovem afirma ser Don Juan, o lendário conquistador de mulheres. Por ter perdido seu primeiro e verdadeiro amor, caiu em profunda depressão. O psiquiatra interpretado por Marlon Brando é chamado para salvá-lo. No início da história, este profissional parece cansado, pronto para se aposentar. Mas, à medida em que ‘Don Juan’ começa a descrever sua vida, ele vai se sentindo revigorado. Ambos se envolvem em um curioso relacionamento que beneficiará até a mulher do psiquiatra, sempre relegada a segundo plano pelo marido.”

Em determinado momento do relacionamento, o paciente faz as seguintes perguntas ao psiquiatra (saudações à Dulcinéa pela sensibilidade e conhecimento):

O que é sagrado?
De que é feito o espírito?
Por que vale a pena viver?
Por que vale a pena morrer?

As questões instigantes provocam ligeira reflexão. O sagrado é tudo aquilo que está de acordo com a vida, é o que busca o sentido e o significado como um brinde à existência humana; é o fato de estar seguindo esta corrente e este fluxo. É também a conseqüência de tudo isso. O sagrado é o encantamento, é o simples, mas é também o que está além da compreensão humana. Ocorre quando ficamos mudos (kairós?) em certos momentos como no pôr-do-sol, quando nasce uma criança, quando apreciamos uma flor, uma imagem, uma fantasia. São momentos de emoção, expansão e pertencimento. Todos precisamos ter espaço para a manifestação desses aspectos fundamentais, mas atualmente parece haver dificuldades para isso, pois o sagrado foi eliminado dos componentes sociais, das instituições, das organizações e até mesmo de muitas famílias. Mas o apego ao consumismo e ao tempo linear e cronológico deve ser sempre uma opção responsável de cada pessoa. Maior ampliação da consciência é o antídoto para o tratamento massificado promovido pela mídia e instituições. Cidadania seria a expressão da consciência no nível social, campo que não beneficia o consumismo desenfreado e nem a paixão política ou ideológica.

O espírito, nos muitos sentidos da palavra, aponta para o princípio animador ou vital dos organismos físicos. No grego corresponde a ‘pneuma’ (o sopro vital), pois o princípio do ar e da respiração acompanha o indivíduo desde o nascimento até o último suspiro. Assim, o espírito não é a ALMA (conceito que ainda veremos de acordo com a Psicologia Junguiana). Nós sentimos o espírito, não sabemos tanto dele da mesma forma que normalmente não tomamos conhecimento da nossa respiração, mas ela continua no seu ritmo indispensável. Não podemos saber de tudo o que ocorre, assim catalogamos o que não é percebido como participante dos processos inconscientes. E se não sabemos de tudo, é boa escolha não alimentar a prepotência e termos mais humildade intelectual. O espírito se manifesta em nós através de inspirações rápidas e fugidias que voam para as nuvens como pássaros muito rápidos que não foram recebidos na nossa consciência egóica. É também como o vento que surge e não sabemos de onde vem nem para onde vai.

Vale a pena viver se conseguirmos experimentar o sagrado de que somos, o que somos e como somos. Seres únicos, singulares, específicos – e participantes de um cenário maior e social de eternos aprendizes. E ter consciência de tudo isso.

Vale a pena morrer porque faz parte do sagrado da vida. Se vale a pena viver, a morte é o desdobramento natural. Tem medo da morte quem normalmente receia a plenitude de sua vida. Não há conflito entre vida e morte. A vida completa contempla nascimento e morte. Quem chegar ao seu momento culminante com a impressão de que tirou o máximo de si mesmo encontrará a plenificação e a realização. Para Jung esse é o “coroamento da vida. E a morte é a última linha de todas as coisas: mas eu não abro mão de nenhuma delas.”

Voltando às questões suscitadas no filme, passemos à resposta única do nosso Don Juan de Marco para as quatro perguntas: SÓ POR AMOR! (Ou com ele está relacionada).

A palavra amor é dessas que nos dão a impressão de que sabemos tudo ou então não sabemos nada, dependendo de cada momento que marca o nosso tempo mágico (kairós). Vimos sua importância ressaltada nos dois filmes. Mas o que é o amor? Para melhor reflexão, vamos associá-lo com EROS, como já faziam os antigos gregos.

(continua)


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24 novembro 2008

Detalhes do Blog







Estamos muito contentes em compartilhar assuntos tão interessantes e instigantes. Nossa intenção é trazer certa reflexão para a vida, pois a rotina de objetivos apenas “egóicos” e materialistas, apesar de necessária, traz desgaste e cansaço. Gostaríamos de comentar alguns aspectos para melhorar nosso contato com os “assinantes” do blog:










1) Temos um grupo variado de pessoas, incluindo enfermeiros, médicos, homeopatas, advogados, professores, psicólogos, jovens, idosos, astrólogos, arteterapeutas, psicopedagogos, executivos, administradores, funcionários diversos, estudantes, donas de casa, aposentados, etc. Achamos que essa diversidade é maravilhosa, entretanto é bastante delicado elaborar artigos que atinjam um público tão eclético. Mas esse é nosso interessante desafio, pois um dos objetivos deste trabalho é tornar acessível alguns aspectos da mitologia e da Psicologia Junguiana. É um fio de navalha, já que não devemos usar palavras e conceitos muito complexos ou elaborados. Contudo, é uma forma de colocar pessoas em contato com idéias importantes que podem contribuir para o processo de autoconhecimento. Mas para sabermos o ponto certo, precisamos contar com o “feedback” ou opinião das pessoas e isso pode ser feito pelos comentários no próprio blog ou por email.

2) Temos, além do aspecto do nível de profundidade dos artigos, a sua extensão ou tamanho. Se encurtar muito compromete o conteúdo; alongar demais pode torná-los cansativos. E as pessoas não têm muito tempo disponível. Mas esse é outro assunto que abordaremos em artigo futuro: a administração do tempo! A comodidade exagerada e nunca termos tempo são fatores que fazem a vida perder seus aspectos de qualidade. Afinal, como estão sendo percebidos os artigos em termos de conteúdo e de tamanho?

3) Gostaríamos também de ter sugestões de assuntos ou temas a serem abordados, apesar de certo planejamento. Mas qual é o grau de satisfação dos leitores com as publicações?
Procuramos ficar atentos a isso.

4) Inscrição no blog. Os artigos são focados nesse público que acompanha realmente o desenvolvimento dos assuntos. Muitas pessoas visitam e gostam do blog, mas a inscrição consolida o grupo e motiva a continuação do trabalho, mostrando que as pessoas estão usufruindo do conteúdo. Por isso é importante que nos ajudem a divulgar junto a pessoas conhecidas e familiares que possam participar. Divulgue nosso blog! A melhor propaganda é aquela individual (boca a boca, lista pessoal de emails).

5) Apesar da comodidade de receber os artigos na caixa de email, é importante visitar o blog pelo menos uma vez por semana. Pode haver novidades diversas, programações, etc. Nesta semana colocamos uma enquete/pesquisa que está no final da barra esquerda. Participe, dê o seu voto!

6) A aquisição de livros com o “livreiro” Francisco também é uma forma de participação, usufruindo de comodidade, qualidade no atendimento e bom preço. Os dados estão na barra esquerda no blog.

7) O livro MITOLOGIA E VIVÊNCIAS HUMANAS foi enviado para a gráfica, no dia 24/nov/2008, após um final de semana pleno de trabalho de acabamento. Informaremos quando estiver disponível nas livrarias e com o Francisco. Certamente a participação no blog ficará mais estimulada com a leitura desse livro.

8) Vários “assinantes” do blog estão repassando ou imprimindo alguns artigos. Não há problema algum. Lembramos apenas que, em certas situações, é importante citar a fonte, dando os créditos devidos. No que diz respeito à divulgação, é muito mais interessante tornar mais conhecido o blog e nosso livro que o artigo especificamente.

9) É também importante sabermos o número ideal de artigos a serem postados semanalmente. Em princípio pensamos no mínimo em um e no máximo em três. Provavelmente faremos uma enquete sobre isso.

Estamos muito contentes com a receptividade de muitas pessoas. Sabemos que dúvidas e enfoques diferentes poderão ocorrer e a diversidade é saudável. Participem!


Obs. Os Grupos de Estudo têm sido uma ótima experiência compartilhada. O grupo das tardes de quintas-feiras aproveitou recentemente verdadeiras sessões de cinema para apreciar e discutir HELENA D E TRÓIA e TRÓIA. Fomos agraciados com a gentileza e o carinho da anfitriã e amiga Ana, que além da simpatia nos brindou com um manjar digno de ser servido no Olimpo: um bolo de nozes de despertar todos os prazeres do paladar.

Assim, juntamos a magia do momento para despertar reflexões oriundas dos mitos e dos filmes com a apreciação desse resultado de uma verdadeira obra alquímica que busca as transformações e a elevação dos prazeres naturais e instintivos.

E ela ainda nos oferece a receita maravilhosa:


Bolo de Nozes (Galvão)

200g. de manteiga
2 xic. de açúcar
2 xic. F. de trigo
3 ovos
1 colher de sopa de fermento royal
½ xic. Chá castanhas ou nozes moídas
1 vidro leite de coco

Modo de Fazer

Bata em creme a manteiga, com o açúcar e junte as gemas uma de cada vez. Peinere juntos a farinha e o fermento. Adicione ao creme alternando com as nozes e o leite de coco. Por fim, junte as claras em neve e leve ao forno moderado (190*C) por 40/45minutos.

Cobertura

Leite moça e, aproximadamente 1 colher de sopa de chocolate. Quando estiver pronto jogue conhaque e nozes.


Muito obrigado, Ana! Um brinde a todos!

19 novembro 2008

Belchior e Cazuza





Belchior e Cazuza

Crítica e autocrítica. Pessoal e de uma geração. Para alguns o sonho acabou e isso significa cristalizar as idéias, a ideologia e o modo de perceber o mundo. Para outros o processo de questionamento e ré-construção continua. Belchior já nos incitava com palavras consagradas na linda voz de Elis Regina:

COMO NOSSOS PAIS

Não quero lhe falar meu grande amor das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi e tudo que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar, eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa
Por isso cuidado meu bem, há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está fechado prá nós que somos jovens
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz


Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantada com uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração


Já faz tempo eu vi você na rua, cabelo ao vento, gente jovem reunida
Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais
Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos...
Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais


Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não
Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer que 'eu tô por fora, ou então que eu tô inventando'
Mas é você que ama o passado e que não vê
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem


Hoje eu sei que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude
Tá em casa guardado por Deus contando vil metal
Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo que fizemos
Nós ainda somos os mesmos e vivemos...
Ainda somos os mesmos e vivemos...
Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais!



E Cazuza complementa junto com Arnaldo Brandão:

O TEMPO NÃO PÁRA

Disparo contra o sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou o cara
Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara

Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não pára

Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta

A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas idéias não correspondem aos fatos
O tempo não pára

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára
Não pára, não, não pára

Eu não tenho data pra comemorar
Às vezes os meus dias são de par em par
Procurando agulha no palheiro

Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam o país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro

A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas idéias não correspondem aos fatos
O tempo não pára

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára
Não pára, não, não pára

Quando o poeta permite o fluxo de idéias, imagens e símbolos, agitando o consciente pessoal ou coletivo que muitas vezes tem a pretensão de reprimir essa dinâmica, nós pobres mortais, atingidos e admirados, somos convidados a nos calar e a refletir.

18 novembro 2008

Alma (2)


(continuação)

Para o psiquiatra e estudioso da mente humana Carl Gustav Jung, o termo alma é bastante específico. Ele buscou um entendimento sobre o assunto em bases históricas e nas suas observações diretas em fenômenos que incluíam dissociações de personalidade em esquizofrênicos. Mas Jung também percebeu que mesmo em indivíduos normais ou adaptados há vestígios de certa divisão de personalidade. Basta observar alguém em circunstâncias diferentes para percebemos mudanças de atitude quando esta pessoa passa de um ambiente para outro.

Muitas vezes, determinados locais exigem comportamentos diferenciados, pois há expectativas sociais que precisam ser atingidas. Entretanto, se houver identificação plena com um papel (persona – nome oriundo do teatro grego), poderá ocorrer uma duplicação ou dissociação da personalidade. Cada pessoa tem vários papéis (personas) e precisa desempenhá-los com um mínimo de eficiência. Afinal, somos pais, mães, profissionais, cidadãos, vizinhos, alunos, professores, ou seja, temos uma infinidade de papéis. Em contraposição ao ambiente profissional e social, no meio da comodidade familiar, muitos indivíduos apresentam atitude divergente, como ilustra o provérbio: anjo na rua e demônio em casa. Poderíamos acrescentar: e vice-versa. A persona não é, então, idêntica à personalidade, podendo ser definida como a relação com o mundo externo. Ela não é simplesmente uma escolha pessoal, representando uma necessidade coletiva que cada indivíduo precisa corresponder em maior ou menor grau.

Mas e o mundo interno, repleto de conteúdos que afloram do interior da psique? Dessa instância surgem, mesmo sem compreendermos, objetos psíquicos que se apresentam na consciência como inspirações, intuições, imagens ou fantasias. Como tratar com fatores que transcendem a consciência? Essa atitude em relação ao rico e perigoso mundo interno Jung denominou de alma. Ela faz parte da nossa vida, em maior ou menor grau de desenvolvimento e é algo que se mostra funcional para a totalidade da nossa psique, proporcionando maior interação entre consciente e inconsciente.

Com qual desses dois mundos (externo e interno) iremos nos relacionar com maior energia? Ou conseguiremos manter o equilíbrio entre esses aspectos nas diferentes fases da vida que privilegiam adaptações diferenciadas? Representa inegável perigo como a natureza costuma reagir aos exageros de qualquer desses dois pólos exclusivamente. Há pessoas que concentram todos os seus esforços de vida nas realizações externas de poder, consumo ou conquistas pessoais. Ou seja, algo não se desenvolveu com relação aos seus potenciais interiores. Este desequilíbrio costuma cobrar seu preço na saúde física e/ou psíquica.

Com o desenrolar da vida a pessoa pode sentir necessidade de se libertar de qualquer estado de imaturidade demasiadamente rígido e categórico, como também da concentração de energia apenas em alguns objetivos egóicos (poder, realização material, por exemplo). Pode surgir certa inclinação para a libertação da sua alma no sentido de modificar essa forma de vida restritiva, buscando um estado superior de amadurecimento e evolução espiritual. Por isso, na segunda metade da vida a alma tem uma participação mais atuante, proporcionando a integração de conteúdos e valores até então em segundo plano de existência.

Historicamente encontramos os símbolos dessa necessidade de transcendência e evolução do ser humano. Escavações de civilizações antigas mostram a atuação dos símbolos e dos xamãs, notadamente nas figuras de pássaros, serpentes, dragões e outros que também aparecem nos sonhos atuais de muitas pessoas. Podem ser sinais de um processo de individuação em andamento. Uma jornada solitária também pode dizer respeito a esse sentido, mostrando que muitas pessoas estão buscando mudar seu padrão de vida marcado pela contenção, o que ocorre nas marcantes peregrinações que provocam mudanças na forma de encarar o mundo (principalmente o interior!).

A libertação da alma diz respeito às possibilidades de ampliação das vivências, já que a inclinação a certa necessidade de transcendência é marca histórica do ser humano. Esse marco pode significar o renascimento, pois a pessoa quer se conhecer melhor, seja através da sua vida prática ou com o apoio de uma psicoterapia. De qualquer maneira, é um ponto de iniciação que mostra o desenvolvimento e a busca de novas etapas de vida.

No estudo da mitologia, quando surgem as deusas e deuses, podemos nos lembrar imediatamente da alma, aquela entidade que está buscando uma relação entre o consciente e inconsciente. Este diálogo é possível de ser ampliado com o desenvolvimento da sensibilidade, exigindo o investimento de certa energia psíquica que só se torna disponível se não houver concentração de forma unilateral nos aspectos da persona.

A mitologia grega apresenta as divindades como expressões de sentimentos e atitudes humanas. Como ainda estava se estruturando o desenvolvimento da consciência, as ações eram melhor visualizadas quando projetadas no mundo exterior. Por exemplo: Ares (o deus da guerra) representa os impulsos violentos e rudes que estão presentes tanto em atitudes masculinas quanto femininas. As explosões de raiva ou descontrole são atos praticados por ambos os sexos na sociedade. Afrodite é uma divindade ligada ao acasalamento, à novas floradas. Sua presença é facilmente identificada em qualquer ser humano que esteja apaixonado.

A nossa cultura, marcada pelos gêneros sexuais, deixa as pessoas inicialmente confusas e inclinadas a identificar os deuses com os homens e as deusas com as mulheres. Essa atitude precisa ser modificada para melhor compreensão dos mitos. A Psicologia Junguiana vem em nosso auxílio, alertando que os gregos elaboravam com os mitos as questões humanas universais e sem a predominância do homem ou da mulher. A totalidade de cada ser inclui a capacidade de percepção e desenvolvimento de qualidades mitologicamente masculinas (discriminação, análise, separação, espírito, céu, logos) e femininas (percepção do conjunto, aglutinação, relação, união, terra, corpo, eros).

A junção do elemento masculino (consciente) com o feminino (inconsciente) só é possível com a atuação da alma. Ela é tanto o portal de acesso ao mundo interior como também guia de grande valor nesse mundo percebido como “infernal” e perigoso. Nossos sonhos mostram a atuação da alma na tentativa cumprir a sua meta de ligação e mensageira dos potenciais humanos de crescimento espiritual. Os sonhos tiveram enorme valor na antiguidade, recuperando seu status de importância para a saúde psíquica com o advento da psicologia profunda que leva em conta os fatores do inconsciente coletivo.

As artes também mostram o potencial dessa ligação, o que é decantado desde tempos imemoriais. Os contos de fada, que tanto encantam as crianças, trazem os motivos mitológicos, ilustrando o funcionamento e a dinâmica da psique. Com isso, há um encorajamento aos pequeninos para as etapas de vida que enfrentarão, apesar dos enormes riscos, dificuldades e poderes monstruosos.

Como exemplo histórico e clássico, Dante Aleghieri – considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana, no início do século XIV, na magistral obra sobre um sonho em que enfrenta peregrinação pelo inferno, purgatório e paraíso (não havia ainda a concepção do purgatório na religião católica). Nesse livro, A Divina Comédia, o autor também narra sua perambulação nesse mundo intermediário são purificados os: soberbos, invejosos, coléricos, preguiçosos, avarentos, gulosos e luxuriosos. Poderíamos imaginar que são aqueles que concentraram suas energias em nódulos destruidores do sentido de vida e não ouviram a própria alma.

E talvez representando a própria alma do autor, Beatriz proporciona as possibilidades de guia no desafio dessa arriscada, irônica e didática peregrinação.

17 novembro 2008

Alma (1)


“Tudo vale a pena se a alma não é pequena”


Tabacaria
(Autor: Fernando Pessoa)

.........
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim, não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me,
Quando quis tirar a máscara
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido........


Uma das características do ser humano é possuir as experiências de vontade e reflexão como maneira de conhecer e entender acontecimentos externos e internos. As pessoas assumem atitudes diversas para um melhor ajuste aos ambientes sociais (externos). De um modo geral, possuímos máscaras (personas) com a qual nos apresentamos na vida pública, outras para a vida intima e familiar e outras ainda para se adequarem a determinadas situações. A relação com o mundo exterior torna-se fortalecida e facilitada quando a personalidade se ajusta às expectativas ambientais e das pessoas participantes.

Ao longo da vida e principalmente no círculo familiar, existem papéis que podem ser experimentados: criança travessa, bode expiatório, ovelha negra, dom Juan, mulher fatal. Muitas dessas máscaras continuam pregadas à face, mesmo quando não mais necessárias, como mencionou o brilhante poeta na parte do poema destacada.

A máscara serve ao indivíduo como um mecanismo de adaptação ao meio, possuindo capacidade para mudar ao longo da vida. Na realidade, usamos vários modelos para os diversos papéis e situações, algo que é necessário na adaptação familiar e social. Ela viabiliza uma personalidade pública, funcionando como uma proteção entre a pessoa e o mundo. Uma das metas almejadas dos processos psíquicos é a flexibilização destas máscaras, visando a modificar antigos padrões e sua utilização enquanto é preciso.

Da mesma forma o contato interno, com aquilo que temos de mais íntimo e desconhecido, é feito através de uma entidade (ou personalidade) a alma.


Mar Portuguez
(Autor: Fernando Pessoa)

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


Para o indivíduo, em sua relação interna com o inconsciente, os perigos são imensos, assim como o mar ao qual Deus ofereceu os atributos dos perigos e abismos. Para atuar junto à magnitude de forças presentes no inconsciente, a alma permeia e permite o contato da consciência humana com a energia luminosa que possui no seu interior.

Podemos assim abstrair que a alma é complementar à máscara (persona) e que apresenta a função de ligar o indivíduo às camadas mais profundas da psique. A alma funciona como um portal entre a consciência individual e as áreas mais profundas do ser (inconsciente coletivo). Assim, quando dizemos que a pessoa “tem” alma, significa que ela mostra a sua sensibilidade desenvolvida, iniciando no seu próprio contato com o mundo interior.

A maneira como a pessoa trata seu mundo interior retrata sua alma. E isso se manifesta também nas suas relações com os objetos externos. A percepção com mais equilíbrio entre os fatores externos e internos é questão fundamental para a saúde psicológica, pois se um dos aspectos prevalecer o eu perde a sua flexibilidade. Alma e persona mantêm uma relação de simetria e complementação, podendo ser uma o espelho da outra.

O desenvolvimento da consciência coloca o indivíduo e sua alma num processo dialético. É o contato entre a parte racional e a irracionalidade do inconsciente coletivo que marca, muitas vezes de maneira acentuada, a segunda metade da vida. Este diálogo é parte do Processo de Individuação, que promove a busca da realização do nosso tesouro interno. O que exige determinação e muita transpiração.


“Para Ser Grande”
(Autor: Ricardo Reis ou Fernando Pessoa)

“Para ser grande, sê inteiro:nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”


O simbolismo histórico da Lua aponta para a sua conjunção com o Sol, mostrando o potencial a ser realizado nesse encontro do mundo inconsciente quando pode entrar em contato com as luzes da consciência. É o processo alquímico das transformações da natureza e do próprio homem. Com as asas da alma...



12 novembro 2008

Versões dos Mitos


Ver filmes sobre mitologia pressupõe uma atitude crítica que não difere de quando vemos outras histórias projetadas na tela. Na realidade, pouco importa se as narrativas foram inventadas como forma de ficção. Os cinéfilos ficam atentos aos mínimos detalhes, imaginando, em todo momento, qual a intenção do diretor, que é um verdadeiro contador de histórias. Cada cena, imagem ou diálogo são intencionais e certamente remeterão a uma estrutura geral e estratégica planejada pelo diretor. Afinal, conseguiremos antecipar os desdobramentos da história e prever as reviravoltas da trama e o final do filme? Conseguiremos apreender sua mensagem subliminar?

Apreciar as narrativas sobre mitologia leva a um comportamento pleno de expectativas. Mas, nos casos que envolvem mitos, é importante esclarecer ainda mais alguns aspectos.

Como vimos, as versões de TRÓIA e HELENA DE TRÓIA apresentam os mesmos personagens com características e personalidades totalmente diferentes. No primeiro, Brad Pitt personifica um Aquiles mais heróico e filho de uma deusa (Tétis). No segundo, o herói não assume o mesmo grau de importância ou destaque. Helena também é apresentada em duas versões distintas: uma aventureira capaz de causar uma guerra sem proporções ou como autêntica filha de Zeus, capaz dos maiores sofrimentos em nome do amor. Essas diferenças nos levam a questionar, levando em conta nossos aspectos lógicos e racionais, sobre qual seria a verdadeira história escrita por Homero. Mas seria essa indagação algo tão importante? Vamos utilizar Jung como nosso guia (1*, p.112) para tentar desvelar essa questão.

Para captar o sentido do mito precisamos abrir mão do predomínio dos aspectos racionais e lógicos. Esses princípios norteiam o espírito científico, que verifica o fenômeno do simbolismo como verdadeiro aborrecimento, pois os símbolos não se deixam apreender de maneira completa e precisamente apenas pelo intelecto. Nesse ponto aparece nossa resistência em aceitar várias versões dos mitos. Sem perceber diretamente, desejaríamos apreciar as histórias de forma mais simples, linear e lógica.

Entretanto, a origem dos mitos remonta ao primitivo contador de histórias, aos seus sonhos e às emoções que a sua imaginação provocava nos ouvintes. Esses contadores não foram gente muito diferente daquelas que gerações posteriores chamaram de poetas ou filósofos. Não os preocupava a origem das suas fantasias; só muito mais tarde é que as pessoas passaram a interrogar de onde vinha uma determinada história. No entanto, no que hoje chamamos de Grécia ‘antiga’ já havia espíritos bastante evoluídos para conjeturar que as histórias a respeito dos deuses nada mais eram que tradições arcaicas e bastante exageradas de reis e chefes há muito sepultados. Os homens daquela época já tinham percebido que o mito era inverossímil demais para significar exatamente aquilo que parecia dizer. E tentaram, então, reduzi-lo a uma forma mais acessível a todos.

Assim, os aedos e rapsodos, que contavam histórias nas praças da antiga Grécia, foram os precursores dos poetas, artistas e até mesmo dos filósofos. Eles levavam as pessoas a refletir sobre suas vidas, incluindo a participação coletiva no passado, presente e futuro.

Todavia, os gregos se autopersuadiram de que seus mitos eram simples elaborações de histórias racionais ou ‘normais.... Algo parecido ocorreu na história recente com relação aos sonhos quando alguns estudiosos concluíram que eles não significavam o que pareciam significar. Essa forma de abordar o assunto percebia de forma absolutamente reduzida imagens ou símbolos que apresentavam.

Perceber a grandeza de mitos e símbolos é algo que exige toda a personalidade e não apenas a percepção pela razão (hemisfério esquerdo do cérebro!). Esses conteúdos normalmente têm mais de uma explicação e apontam para direções diferentes, pois se referem e tocam nossos conteúdos inconscientes ou parcialmente conscientes.

Mitos e símbolos nos atingem trazendo afetos e emoções que não podemos encerrar em definições absolutas, mostrando assim a intervenção do inconsciente, ou seja, algo que não conhecemos ou captamos apenas em certa parcela.

Inconsciente e emoção são dois fatores participantes de nossas vidas e precisam ser levados em consideração. Quando percebemos a dinâmica de suas atuações, torna-se claro que é impossível abarcá-los somente com nosso pensamento racional. Compreendendo-os ou não eles participam do fluxo de nossas existências. Os símbolos que os provocam carecem de assimilação e integração. Nosso próprio inconsciente produz seus símbolos, que surgem espontaneamente nos sonhos, nas artes, nos mitos e em muitas expressões humanas..

O grande poeta Fernando Pessoa acredita no uso de palavras como um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual, pois elas contêm uma idéia e uma emoção. Ele percebe na arte clássica (grega e romana) uma disciplina natural, espontânea que está nas emoções com uma harmonia comum à alma, repelindo o que é excessivo. Isso é sentido e não pensado, não é uma deliberação da mente. Assim, buscam-se o ritmo e a emoção na harmonia que toca a alma.

Essa forma de perceber o mundo externo se disponibiliza quando são acionados os conteúdos internos de cada pessoa. Ao vermos as figuras mitológicas em ação, na forma que são contadas ou narradas pelos contadores de histórias ou nos próprios filmes, é importante perceber em que ponto somos tocados. Algo em nós entra em sintonia com a forma de agir dos personagens que admiramos, ou que então nos incomoda com aspectos desconfortáveis para a nossa própria personalidade.

Procurar a versão mais verdadeira e correta seria uma tarefa apenas intelectual e inglória. O próprio Homero, ao citar deuses, homens, mulheres e heróis na Guerra de Tróia se baseou em narrativas que se sucederam e sofreram transformações durante mais de três séculos. O que ele narrou sofreu certamente a interferência do seu ponto de vista pessoal e dos interesses que tinha em mente no momento daquela sua criação. O mito desperta em cada um a sua capacidade de co-criador da história e de como percebe o mundo. As histórias são fortes por si mesmas, despertando muitos motivos interiores em todos nós. Esse é o aspecto relevante e que pode contribuir para o autoconhecimento. O mestre Junito Brandão percebia nas várias versões o pulmão do mito, algo que o mantém vivo e energizado, podendo ser contado e recontado sucessivamente. O seu valor está nos conteúdos que desperta e a nossa própria reflexão sobre tudo isso.

Os mitos são organizadores e formadores da consciência, o que podemos ver claramente funcionar quando as crianças apreciam as histórias infantis, Sua ação vai do caos inicial à formação do cosmos e da ordem para cada um de nós em particular. Esse é o nosso processo que enfrentamos desde que nascemos, ou seja, a formação e a ampliação da consciência.

Cada pessoa pode perceber e trabalhar com o que foi despertado e tocado pelo desenrolar das histórias. Por exemplo, o que tenho a ver com a falta de escrúpulos de um rei como Agamêmnon ou com a excelência do desempenho de Aquiles e seus objetivos de glória, mesmo rumando para a própria morte? E as ofertas das deusas ao jovem Paris, o que isso tem a ver com os meus valores de ontem e de hoje? Se os cenários e as faixas etárias mudam, certamente haverá mitos adequados que terão e despertarão conteúdos próprios nessas diferentes ocasiões.

Prestamos atenção no desenrolar de histórias e filmes pretendendo antecipar as intenções e conseqüências das opções do diretor. Vemos mudanças, alternâncias, seqüências, conseqüências e muitas coisas (não) muito interligadas, relacionadas ou não. Desenvolvemos o gosto de participar da história através da nossa própria identificação com os papéis de alguns personagens, normalmente um em particular.

Estas reflexões precisam ser integradas nas nossas vidas. A começar pelo valor da imagem e das emoções decorrentes. Como tudo isso interfere e participa no que estamos construindo em nossa existência? Certamente viveremos melhor quando estivermos seguindo o nosso mito pessoal como um todo. Ou seja, quando assim assumimos a responsabilidade de produzir, dirigir e agir no filme das nossas próprias vidas.


Ref.
(1). JUNG, Carl Gustav et al. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.



10 novembro 2008

Lulu Santos e Heráclito


Vamos aceitar o convite de Lulu Santos e Nelson Motta para soltar a imaginação e liberar as fantasias nesse constante fluir:



COMO UMA ONDA NO MAR


Nada do que foi será

De novo do jeito que já foi um dia

Tudo passa, tudo sempre passará

A vida vem em ondas,como um mar

Num indo e vindo infinito


Tudo que se vê não é

Igual ao que a gente viu a um segundo

Tudo muda o tempo todo no mundo

Não adianta fugir

Nem mentir pra si mesmo - agora

Há tanta vida lá fora

Aqui dentro sempre

Como uma onda no mar



A letra esclarece sutilmente a questão que atormenta alguns “filósofos” sobre a realidade estar no mundo exterior ou interior... como se fossem excludentes! Com o fluir da energia, ela começa internamente, circula no mundo exterior e volta para o seu ponto de partida. Neste retorno a energia é percebida de forma diferente, pois foi enriquecida pela experiência externa.

O conteúdo desses questionamentos nos remete a Heráclito de Éfeso (na Jônia, atual Turquia), um dos primeiros pensadores chamados de pré-socráticos. Com sua percepção da physis (fundamento, natureza) e a base no elemento fogo, o filósofo proclamou o “Panta Rhei” – ou seja, tudo vai se transformando. A vida é percebida como constante movimento (você não pisa no mesmo rio duas vezes...). O indivíduo a cada momento se transforma e torna-se diferente do que era anteriormente. É o mundo temporal que abarca nossa experiência de vida.
E assim o eu (ego) vai se modificando e incorporando novas expectativas e experiências, precisando seguir seu caminho de constante construção e reconstrução de si mesmo.

A energia precisa fluir, o que é válido tanto para os aspectos físicos como para os psíquicos ( libido - energia psíquica). Esse desenvolvimento possibilita cada ser na busca de sua meta que é tornar-se singular e completo, não negando qualquer componente da sua personalidade ou psique.

O fluir da vida traz a importância do gerúndio, pois o que importa é o que você está fazendo, pensando, sentindo, agindo, planejando, executando. Observar o resultado de tudo isso é entrar na dialética da vida, percebendo a lei que rege os contrários. Como observou Heráclito, quanto mais você se deixa absorver unilateralmente por um ponto de vista, mais você se aproxima do seu contrário. Essa é a dinâmica entre os opostos, cuja mudança pode ocorrer abruptamente. Quando nos aprofundamos em um dos pólos ou extremos de uma questão mais nos aproximamos do seu contrário. A vida pede que se contemplem os contrários e que se busque, na medida do possível, uma posição de equilíbrio dinâmico entre eles. Ou seja, precisamos saber que podemos transitar entre os opostos, mas permanecer em um deles é cristalizar a posição e estancar a energia. As grandes conversões e mudanças de atitude de vida ilustram muito bem essas possibilidades. As conseqüências, boas ou não, poderão ser observadas nos desdobramentos futuros e na plena realização do potencial de cada um.

Uma canção faz sucesso quando toca na alma ou no coração de muitas pessoas, normalmente trazendo temas compartilhados mesmo que não sejam assim percebidos. Aguardar e valorizar o novo faz parte da corrente da vida. A arte mostra o fluir e os intuitivos antecipam o que ocorrerá no consciente coletivo.

Heráclito foi considerado o pai da dialética. A dialética dos contrários traz sempre novas possibilidades. Como uma onda no mar...

07 novembro 2008

Hemisférios Cerebrais

A noção e percepção do conjunto sempre é um desafio. Normalmente damos atenção a um aspecto do problema e deixamos de lado outros que parecem ter menos importância, pelo menos naquele momento. A questão da “figura e fundo” mostra bem isso. Muitos testes e fotos que nos despertam visões que se alternam são de domínio geral. Se num primeiro olhar vejo dois rostos negros numa figura, logo em seguida eles podem se deslocar para o segundo plano e percebo melhor agora um cálice branco. É a dinâmica da Gestalt em funcionamento, apresentando em alguns momentos que algo é figura, mas existe um fundo que poderá alternar para o primeiro plano. É questão de prioridade na nossa percepção. Ou seja: quando valorizamos algo na nossa consciência podemos estar desprezando outros aspectos da questão ou do ambiente!

Não é apenas nossa visão que é seletiva, a consciência também tem essa qualidade. Fazemos escolhas ao nos defrontarmos com os fatos e objetos do mundo. Concentramos muita energia em tudo o que vamos discriminando, esquecendo-nos de que temos um risco nesse processo: e o material que não foi escolhido, o que é feito dele ao ser deslocado para o segundo plano? Como ele se comporá nos nossos processos inconscientes?

Essas são questões importantes que acompanham o nosso processo de ampliação de consciência. O exagero, a paixão e a unilateralidade podem comprometer a busca do equilíbrio e da capacidade de perceber maior potencial da própria vida. A psicossomática enfoca as questões que faltam na psique e surgem na forma de sintomas elaborados no corpo. Nesse aspecto a doença é uma questão de polaridade.

Se podemos a perceber apenas um aspecto da questão, a união dos opostos é uma tarefa individual necessária para apreendermos melhor os conteúdos que se apresentam disponíveis para a nossa consciência.

A natureza trabalha com a integração dos opostos, não se detém apenas em um pólo do fenômeno, a alternância dita o ritmo da vida, como nos batimentos cardíacos. Outro forte exemplo é o funcionamento cerebral. Temos dois hemisférios e cada um deles se manifesta nos lados do corpo. Se alguém tem um acidente vascular cerebral (AVC) no hemisfério esquerdo, ficará comprometido o lado direito do corpo, e vice-versa. Vamos diretamente ao ponto crucial sobre as características desses hemisférios cerebrais:

ESQUERDO. Temos aí as qualidades pontuais e racionais que tanto são valorizadas na nossa cultura: lógica, linguagem (sintaxe, gramática), leitura, escrita, cálculos, contagem, pensamento digital e linear, tempo, análise, inteligência, consciente, consciente, atividade, eletricidade.

DIREITO. Percepção da forma, totalidade, espaço, formas arcaicas e primitivas de linguagem, música, olfato, padrão total, visão abrangente do mundo, pensamento analógico, simbolismo, atemporalidade, holismo, conceitos lógicos, intuição, inconsciente, feminino, passividade, magnetismo.

Fica claro que esse conjunto e totalidade são de grande importância. E antes que valorizemos o outro lado, vamos notar que “quando se trata de contextos que ponham em risco a vida humana ela automaticamente muda de controle do hemisfério esquerdo para o do direito, visto que procedimentos analíticos não são capazes de enfrentar situações de perigo onde se exige calma e competência”. Ou seja, nossas capacidade de análise limita-se aos casos em que tenhamos o mínimo de controle da situação.

Salta aos olhos a necessidade de integração desses componentes. Entretanto, surge uma pergunta instigante: por que a ciência e normalmente cada ser humano em particular, tendem a supervalorizar as questões ligadas ao hemisfério esquerdo em detrimento do seu par e oposto? A vida não se deixa apreender apenas no que pode ser medido e pesado, pois ela flui buscando sua totalidade. Se não consigo medir e pesar objetivamente minhas emoções e o mesmo ocorre com as intuições – nem por isso elas deixam de fazer parte da minha experiência diária. Mas na nossa sociedade ideológica e de consumo infelizmente aparece supervalorizada apenas uma face dessa preciosa moeda que é a nossa mente.

Para ilustrar melhor o assunto, apresentamos dois vídeos do YouTube que relatam forte experiência de uma pessoa que teve um AVC. Os relatos são feitos em dois vídeos para serem vistos em sequência (aproximadamente 10 minutos de duração cada um):

http://es.youtube.com/watch?v=m0O0Il8Vn_g&feature=related

e http://es.youtube.com/watch?v=thWwpYNN3-A&feature=related

Bom proveito. Vamos em frente que a vida é muito rica para ser percebida apenas em alguns aspectos. Um brinde à totalidade do que pode ser vivido!!

04 novembro 2008

Aquiles e Tétis (2)

(Continuação do artigo anterior).

Com a iminência da Guerra de Tróia, Tétis buscou o adivinho Calcas para saber sobre o futuro de seu filho. Então a divina mãe soube que as Moiras, divindades relacionadas com o destino, condicionaram a vitória grega à morte de Aquiles. Na Ilíada, Homero descreve que Aquiles pôde escolher entre duas opções: “uma vida longa e inglória em sua pátria” ou “ter seu nome imortalizado, porém morrer prematuramente”.

Esse dilema pode ser percebido na vida das pessoas em todos os tempos e torna-se questão de estilo de conduzir a própria vida: tentar levá-la sem maiores riscos ou compromissos ou aproveitá-la intensamente, levando a marca de grandes feitos e proezas. Esta dúvida certamente se apresenta na vida das pessoas e provoca escolhas que trazem as devidas consequências.

Para Tétis, como mãe, não havia dúvida na preferência para que o filho fizesse a primeira opção. Certamente gostaria que ele vivesse o máximo de tempo possível. Para isso o levou Aquiles, vestido de mulher, para viver na ilha de Ciros entre as filhas do rei Licomedes. Na mitologia, o travestismo se relacionava a um rito de passagem da adolescência para vida adulta. Aquiles era aí chamdo de Pirra (a ruiva) por ser muito louro. O futuro herói aí permaneceu por algum tempo até que Ulisses (Odisseu, Rei de Ítaca) o encontrou e o convenceu a se juntar aos guerreiros gregos contra a cidadela de Tróia.

A Ilíada descreve em detalhes o último ano da famosa guerra. Os gregos estavam distantes de seu lar e havia conflito declarado entre Agamêmnon e Aquiles. O primeiro era o comandante das forças gregas que com pulso forte e ambição desmedida pelo poder não apresentava qualquer escrúpulo, como demonstrado no sacrifício de sua filha Ifigênia. Aquiles liderava os guerreiros do reino de seu pai Peleu e estava sempre em conflito com Agamêmnon por não concordar com os métodos do comandante e Rei de Micenas. O famoso guerreiro avesso à obediência sem restrições, mostrando personalidade forte e inclinações para a rebeldia. O objetivo do herói era atingir a “imortalidade” pelos seus feitos e não por exercer qualquer poder. O clímax do conflito entre os dois personagens ocorreu em função da disputa pela posse da troiana Briseis que foi aprisionada e feita escrava de Aquiles. Esta jovem e linda mulher era sacerdotisa de Apolo que juntamente com sua irmã Ártemis eram as divindades mais adoradas em Tróia. Com a insistêncica do comandante pela posse de Briseis, Aquiles retirou-se para seu acampamento com a intenção de afastar-se das batalhas.

Nesse ponto, o destino apresentou um fato inusitado: Pátroclo, seu fiel amigo desde os tempos de infância, vestiu a armadura do herói e foi para o campo de batalha. Heitor, o príncipe troiano, pensando tratar-se de Aquiles, travou violenta luta com ele e o matou.

Aquiles, ao tomar conhecimento da morte do amigo, voltou para o campo de batalha e buscou a vingança. Ensandecido e com ferocidade, buscou a revanche, desafiou, duelou e matou o herói troiano Heitor. Não satisfeito, pegou seu corpo e o arrastou pelos arredores até o seu acampamento – mostrando o corpo sem vida como se fosse um verdadeiro troféu. Este ato desrespeitou todo cavalherismo que permeava as lutas. Para haver um enterro que permitisse ao seu amado filho chegar ao Hades, o rei de Tróia Príamo foi até o acampamento de Aquiles e humildemente lhe implorou o corpo do filho para prepará-lo para ser enterrado.

Aquiles, ultrapassando os limites consagrados, perdeu a batalha contra si próprio, pois não demonstrou qualquer autocontrole, perdeu o estilo peculiar e agiu apenas com a emoção. Tudo isso foi-lhe mostrado com altives e sabedoria pelo pai do vencido Heitor, Príamo, que sai de sua inespugnável cidadela e humilha-se diante do guerreiro em prol da honra de seu filho. Não foi a vingança cega que motivou a ação de Príamo e sim a manutenção da nobreza e da fidalguia entre guerreiros.

O grande herói grego encontrou a sua morte através de um guerreiro aparentemente pouco preparado para enfrentá-lo: o jovem Páris que desencadeou o conflito pela posse da sua bela Helena. O deus Apolo, partidário dos troianos, guiou a pontaria de Páris para acertar a flecha em seu calcanhar, único ponto fraco do forte guerreiro. O ferimento causou sua morte, o que levou sua mãe solicitar a Zeus que ele fosse conduzido à Ilha dos Bem Aventurados (sub-divisão do Hades para onde iam os heróis após a morte).

Os guerreiros gregos se sentiam extremamente motivados com a participação de Aquiles. No contexto da nossa sociedade atual, batalhar com altivez mostra o ARQUÉTIPO ligado à atitude de Aquiles que orienta muitas pessoas nos grupos e nas organizações. Aponta ainda para aqueles que buscam desempenhar bem o seu papel, com objetividade e produtividade, sem no entanto se render ao uso e abuso do poder e nem se regalar com as pessoas de autoridade. Seria o bem agir sem a intenção de usufruir ou ascender para a posição do poder. Já as ações de Agamêmnon atualmente remetem à falta de escrúpulos, para quem não há limites na busca da ascensão pessoal e profissional. Mesmo com o sacrifício da própria filha (Ifigênia!) ou de conteúdos internos mais elaborados, pois para muitas pessoas que agem assim o que importa é o sucesso a qualquer preço. Se Aquiles cometeu a hýbris pela falta de controle das suas emoções, a ultrapassagem dos limites feita por Agamêmnon era seu próprio estilo de perseguir o poder a qualquer preço.

Para os gregos, os heróis nasciam dotados de timé e areté, assim como os deuses. Timé era a ética em todos os atos e areté correspondia a excelência tanto nas palavras usadas na oratória em assembléias, como também no uso de armas. As divindades podiam ultrapassar os limites. O herói por, ser mortal e humano, precisava respeitar o métron – a medida de todas as coisas e não ultrapassar os limites, o que corresponderia à hýbris, que era punida severamente pelos deuses.

Com a evolução da nação grega e certa ampliação da consciência, buscou-se valorizar não apenas a força física, mas também o conhecimento e a própria sabedoria.

O “calcanhar de Aquiles” foi a objetivação de uma fraqueza que se mostrou presente inicialmente no seu próprio interior: a busca da imortalidade para um humano iniciada pela sua própria mãe. Foi mostrado no corpo algo que simbolizava a desmedida nos próprios objetivos projetados na mente, além de uma ação no mundo em constante alternância entre dois polos: excelência das atitudes e a raiva instintiva e descontrolada.

É muito natural no ser humano, após realizar grande conquista ou feito, ser tentado por uma fantasia de poder em excesso, de ter atingido certo grau de desempenho que o deixa no ponto elevado da sabedoria. Mas essa posição é o marco dos deuses e assim a hýbris normalmente é sucedida por graves consequências. O orgulho da vitória pode trazer a semente de futuros conflitos, problemas e derrotas.

Foi a mensagem do deus Apolo para o desmedimento de Aquiles e a falta de consciência do seu ponto fraco. Mesmo sendo consagrado herói o seu comportamento foi, como diria Nietzche, “humano, demasiadamente humano”!

02 novembro 2008

Aquiles e Tétis (1)

Aquiles tornou-se o herói grego da Guerra de Tróia, sendo considerado como semi-deus na Hélade (antiga Grécia) por sua valentia, força e destreza no uso das armas. Sua curta vida serviu como exemplo heróico para implantação da aristocracia grega conforme nos narra Homero.

Aquiles era filho de Tétis, uma divindade associada ao mar por sua filiação de deuses marítimos primordiais Nereus e Dóris. Segundo alguns poucos fragmentos decodificados, Tétis foi uma divindade adorada pelos primeiros habitantes da Grécia que acreditavam ser ela a criadora do universo. Essa divindade mitológica permaneceu por muito tempo sendo reverenciada até que os deuses Olimpícos (terceira geração divina, liderados por Zeus) começaram a ser mais amplamente cultuados na Hélade.

Algumas antigas divindades passaram a ter um papel secundário, chegando a cair lentamente no esquecimento. Para acelerar esse processo, visando tirar o apelo popular dos antigos personagens divinos, a elite predominante passou a contar história de Tétis incluindo seu casamento com um mortal.

Inicialmente o oráculo (profecia, revelação) sinalizou que Tétis daria a luz a um filho que destronaria seu pai. Zeus pensou em cortejá-la, mas desistiu com esta ameaça velada, tratando de casá-la com um mortal, no caso Peleu, rei da Tessália (região norte). As profecias anunciadas ajudavam para que determinada divindade pudesse ser afastada para a consolidação de outras.

Segundo a narrativa, Quíron, o “centauro ferido”, orientou Peleu na conquista de Tétis. Dessa relação nasceram sete filhos que seriam mortais devido as qualidades do pai. Mas a mãe não se conformou com essa limitação para os filhos, buscando fazê-los imortais com o uso do fogo. Nessa tentativa, os seis primeiros morreram. Quando Tétis, segurando Aquiles pelo calcanhar, começou o ritual, Peleu retirou o filho com a intenção de salvá-lo. Alguns estudiosos afirmam que Tétis, segurando o filho pelo calcanhar, o mergulhou nas águas infernais do rio Estige para conseguir sua imortalidade. De qualquer forma, ficou a marca e o registro da fragilidade dos calcanhares de Aquiles.

O jovem Aquiles foi criado e educado pelo mestre e centauro Quíron com a supervisão de seu pai Peleu. A mãe Tétis acompanhou à distância o crescimento do filho, estando presente para ajudá-lo e orientá-lo quando necessário.

A alimentação proporcionada por Quíron incluía mel de abelhas (alimento associado a sabedoria e ao conhecimento), com medula de ursos (animal cujo simbolismo é ligado ao poder temporal e à classe dos guerreiros) e de javalis (animal associado à autoridade espiritual e classe dos sacerdotes) e com vísceras de leões (animal com simbolismo de poder, sabedoria e justiça). Seu treinamento ocorria em contato com a natureza e atividades de caça, adestramento de cavalos, medicina, música e também a prática da virtude. Aquiles tornou-se um adolescente muito belo, louro, de olhos vivos, intrépido, simultaneamente capaz da maior ternura e da maior violência.

Se a antiga divindade Tétis não conseguiu fazer de seu filho um imortal, pôde testemunhar a vida de Aquiles coroada de honra e vitórias nas batalhas em que esteve presente. Aquiles foi um dos grandes heróis gregos da Guerra de Tróia, sendo reverenciado e cultuado pelos seus feitos e considerado como modelo a ser seguido pelos jovens por muitas gerações. Este aspecto foi muito bem explorado pelo diretor do filme “Tróia” e principalmente pelo ator Brad Pitt cujo desempenho foi marcante, explorando muito bem o impacto das ações espetaculares do grande herói.

Sua mãe Tétis usufruiu da gratidão de Hera, a grande deusa do Olimpo e de Zeus, seu marido. Se não criou seu filho, cuidou e educou Hefesto quando este foi arremessado do Olimpo e caiu no mar. Hefesto era o deus das forjas e trabalhava com o fogo. Ele passou nove anos sob os cuidados de Tétis no fundo do mar. Hefesto tornou-se o protetor amigo e leal tanto de Tétis como de seu filho Aquiles.

Por isso Hefesto se perfilou com os gregos na famosa guerra, confeccionando também as vestimentas indestrutíveis de Aquiles, além de incentivá-lo a manter-se otimista e valente nas lutas. Em certa ocasião, durante as batalhas, o rio Escamandro, cansado de receber tantos cadáveres em seu leito, pretendeu submergir Aquiles e seus guerreiros. Hefesto usando chamas, labaredas e seu sopro ígneo nas águas de Escamandro, obrigou-o a manter-se em seu leito. Homero, falando através de Aquiles na Ilíada, descreveu lindamente que: “a força do rio está em chamas”.

A educação de Aquiles por Quíron teve como objetivo, além da justa preparação para a luta armada e do cumprimento de um grande destino, o desenvolvimento da oratória. Como já vimos, os gregos buscavam o desenvolvimento completo das personalidades cultuadas. Durante sua educação, o herói teve um grande companheiro e amigo de todas as horas chamado Pátroclo. Aquiles se destacava por sua força, sua destreza como caçador e por ser um guerreiro quase indestrutível em lutas com variadas armas. Pátroclo era o amigo leal que o acompanhava em treinamentos e batalhas.


(continua...)