(continuação)
Para o psiquiatra e estudioso da mente humana Carl Gustav Jung, o termo alma é bastante específico. Ele buscou um entendimento sobre o assunto em bases históricas e nas suas observações diretas em fenômenos que incluíam dissociações de personalidade em esquizofrênicos. Mas Jung também percebeu que mesmo em indivíduos normais ou adaptados há vestígios de certa divisão de personalidade. Basta observar alguém em circunstâncias diferentes para percebemos mudanças de atitude quando esta pessoa passa de um ambiente para outro.
Muitas vezes, determinados locais exigem comportamentos diferenciados, pois há expectativas sociais que precisam ser atingidas. Entretanto, se houver identificação plena com um papel (persona – nome oriundo do teatro grego), poderá ocorrer uma duplicação ou dissociação da personalidade. Cada pessoa tem vários papéis (personas) e precisa desempenhá-los com um mínimo de eficiência. Afinal, somos pais, mães, profissionais, cidadãos, vizinhos, alunos, professores, ou seja, temos uma infinidade de papéis. Em contraposição ao ambiente profissional e social, no meio da comodidade familiar, muitos indivíduos apresentam atitude divergente, como ilustra o provérbio: anjo na rua e demônio em casa. Poderíamos acrescentar: e vice-versa. A persona não é, então, idêntica à personalidade, podendo ser definida como a relação com o mundo externo. Ela não é simplesmente uma escolha pessoal, representando uma necessidade coletiva que cada indivíduo precisa corresponder em maior ou menor grau.
Mas e o mundo interno, repleto de conteúdos que afloram do interior da psique? Dessa instância surgem, mesmo sem compreendermos, objetos psíquicos que se apresentam na consciência como inspirações, intuições, imagens ou fantasias. Como tratar com fatores que transcendem a consciência? Essa atitude em relação ao rico e perigoso mundo interno Jung denominou de alma. Ela faz parte da nossa vida, em maior ou menor grau de desenvolvimento e é algo que se mostra funcional para a totalidade da nossa psique, proporcionando maior interação entre consciente e inconsciente.
Com qual desses dois mundos (externo e interno) iremos nos relacionar com maior energia? Ou conseguiremos manter o equilíbrio entre esses aspectos nas diferentes fases da vida que privilegiam adaptações diferenciadas? Representa inegável perigo como a natureza costuma reagir aos exageros de qualquer desses dois pólos exclusivamente. Há pessoas que concentram todos os seus esforços de vida nas realizações externas de poder, consumo ou conquistas pessoais. Ou seja, algo não se desenvolveu com relação aos seus potenciais interiores. Este desequilíbrio costuma cobrar seu preço na saúde física e/ou psíquica.
Com o desenrolar da vida a pessoa pode sentir necessidade de se libertar de qualquer estado de imaturidade demasiadamente rígido e categórico, como também da concentração de energia apenas em alguns objetivos egóicos (poder, realização material, por exemplo). Pode surgir certa inclinação para a libertação da sua alma no sentido de modificar essa forma de vida restritiva, buscando um estado superior de amadurecimento e evolução espiritual. Por isso, na segunda metade da vida a alma tem uma participação mais atuante, proporcionando a integração de conteúdos e valores até então em segundo plano de existência.
Historicamente encontramos os símbolos dessa necessidade de transcendência e evolução do ser humano. Escavações de civilizações antigas mostram a atuação dos símbolos e dos xamãs, notadamente nas figuras de pássaros, serpentes, dragões e outros que também aparecem nos sonhos atuais de muitas pessoas. Podem ser sinais de um processo de individuação em andamento. Uma jornada solitária também pode dizer respeito a esse sentido, mostrando que muitas pessoas estão buscando mudar seu padrão de vida marcado pela contenção, o que ocorre nas marcantes peregrinações que provocam mudanças na forma de encarar o mundo (principalmente o interior!).
A libertação da alma diz respeito às possibilidades de ampliação das vivências, já que a inclinação a certa necessidade de transcendência é marca histórica do ser humano. Esse marco pode significar o renascimento, pois a pessoa quer se conhecer melhor, seja através da sua vida prática ou com o apoio de uma psicoterapia. De qualquer maneira, é um ponto de iniciação que mostra o desenvolvimento e a busca de novas etapas de vida.
No estudo da mitologia, quando surgem as deusas e deuses, podemos nos lembrar imediatamente da alma, aquela entidade que está buscando uma relação entre o consciente e inconsciente. Este diálogo é possível de ser ampliado com o desenvolvimento da sensibilidade, exigindo o investimento de certa energia psíquica que só se torna disponível se não houver concentração de forma unilateral nos aspectos da persona.
A mitologia grega apresenta as divindades como expressões de sentimentos e atitudes humanas. Como ainda estava se estruturando o desenvolvimento da consciência, as ações eram melhor visualizadas quando projetadas no mundo exterior. Por exemplo: Ares (o deus da guerra) representa os impulsos violentos e rudes que estão presentes tanto em atitudes masculinas quanto femininas. As explosões de raiva ou descontrole são atos praticados por ambos os sexos na sociedade. Afrodite é uma divindade ligada ao acasalamento, à novas floradas. Sua presença é facilmente identificada em qualquer ser humano que esteja apaixonado.
A nossa cultura, marcada pelos gêneros sexuais, deixa as pessoas inicialmente confusas e inclinadas a identificar os deuses com os homens e as deusas com as mulheres. Essa atitude precisa ser modificada para melhor compreensão dos mitos. A Psicologia Junguiana vem em nosso auxílio, alertando que os gregos elaboravam com os mitos as questões humanas universais e sem a predominância do homem ou da mulher. A totalidade de cada ser inclui a capacidade de percepção e desenvolvimento de qualidades mitologicamente masculinas (discriminação, análise, separação, espírito, céu, logos) e femininas (percepção do conjunto, aglutinação, relação, união, terra, corpo, eros).
A junção do elemento masculino (consciente) com o feminino (inconsciente) só é possível com a atuação da alma. Ela é tanto o portal de acesso ao mundo interior como também guia de grande valor nesse mundo percebido como “infernal” e perigoso. Nossos sonhos mostram a atuação da alma na tentativa cumprir a sua meta de ligação e mensageira dos potenciais humanos de crescimento espiritual. Os sonhos tiveram enorme valor na antiguidade, recuperando seu status de importância para a saúde psíquica com o advento da psicologia profunda que leva em conta os fatores do inconsciente coletivo.
As artes também mostram o potencial dessa ligação, o que é decantado desde tempos imemoriais. Os contos de fada, que tanto encantam as crianças, trazem os motivos mitológicos, ilustrando o funcionamento e a dinâmica da psique. Com isso, há um encorajamento aos pequeninos para as etapas de vida que enfrentarão, apesar dos enormes riscos, dificuldades e poderes monstruosos.
Como exemplo histórico e clássico, Dante Aleghieri – considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana, no início do século XIV, na magistral obra sobre um sonho em que enfrenta peregrinação pelo inferno, purgatório e paraíso (não havia ainda a concepção do purgatório na religião católica). Nesse livro, A Divina Comédia, o autor também narra sua perambulação nesse mundo intermediário são purificados os: soberbos, invejosos, coléricos, preguiçosos, avarentos, gulosos e luxuriosos. Poderíamos imaginar que são aqueles que concentraram suas energias em nódulos destruidores do sentido de vida e não ouviram a própria alma.
E talvez representando a própria alma do autor, Beatriz proporciona as possibilidades de guia no desafio dessa arriscada, irônica e didática peregrinação.
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