(continuação)
A questão do amor abrange aspectos amplos e diferenciados. O amor romântico se manifesta universalmente na paixão e complementação entre duas pessoas. Já nascemos com o signo da separação (cordão umbilical, mãe, pai, e fundamentalmente o surgimento do eu (ego) a partir da separação do Si-mesmo ou Self) . Assim, nossa sina torna-se a busca e a tentativa de complementação do que nos falta. Somos fugidores ou caçadores de nós mesmos, dependendo das nossas prioridades e circunstâncias.
O encontro amoroso do parceiro ideal é movido pela paixão desenfreada que surge através do amor. Mas da mesma forma que ele chega inesperadamente pode desaparecer, confirmando apenas o estado de paixão e não de puro amor. Mas não tratamos apenas da manifestação desse tipo de amor, pois as pessoas sentem amor pelos pais, pelos filhos, pela profissão, pelas artes, pelo país, e o amor maior por Deus e pela vida.
Esse amor maior e autêntico é aquele que permite as transformações e o próprio processo de individuação. Ele é veiculado pela alma que, partindo do contato interno numinoso (mais que luminoso, mágico e até mesmo divino) traz o amor pela própria vida e a busca do seu sentido. Esse encontro ocorre no somatório das pequenas e grandes realizações, incluindo as pequenas coisas do dia-a-dia e atingindo as grandes conquistas pessoais de todas as categorias.
O amor é a ligação plena com a vida, é um estado de elevação espiritual. E aqui não tratamos de algo apenas em teoria, pois se não temos uma comprovação científica dos efeitos do amor, percebemos seus resultados práticos na qualidade de vida que proporciona. O mesmo ocorre com relação ao Si-mesmo (Self), como menciona Von Franz (*1, p. 212): “No decorrer dos tempos, os homens, por intuição, estiveram sempre conscientes desse centro (organizador da psique). Os gregos o chamavam de daimon, o interior do homem; no Egito ele estava expresso no conceito de alma-Ba; e os romanos adoravam-no como o ‘gênio’ inato em cada indivíduo. Em sociedades mais primitivas imaginavam-no muitas vezes como um espírito protetor, encarnado em um animal ou um fetiche.”
Entramos em contato com o Si-mesmo pela nossa alma e ela é aprimorada através do sentimento do amor. Dessa forma, só podemos amar verdadeiramente uma outra pessoa se tivermos amor com a nossa própria alma e sensibilidade interior.
Von Franz ainda menciona o contato do eu com o Si-mesmo (centro da nossa psique, ou seja, consciente e inconsciente, o que conhecemos e o que não percebemos ainda): “Ouvindo-o, tornamo-nos seres humanos mais completos. O processo acontece como se o eu (ego) não tivesse sido produzido pela natureza para seguir ilimitadamente os seus próprios impulsos arbitrários, e sim para ajudar a realizar, verdadeiramente, a totalidade da psique. É o eu que ilumina o sistema inteiro, permitindo que ganhe consciência e, portanto, que se torne realizado. Se, por exemplo, possuo algum dom artístico de que meu eu não está consciente, este talento não se desenvolve e é como se fosse inexistente. Só posso trazê-lo à realidade se meu eu o notar. A totalidade inata, mas escondida, da psique, não é a mesma coisa que uma totalidade plenamente realizada e vivida.”
O amor é a ligação de cada um com a sua própria vida e com as outras pessoas e coisas, culminando com o próprio mundo em que vive. Outros tipos de ligação também ocorrem e os antigos gregos já estavam atentos, como nos mostra claramente o mito de Eros e Psiquê (MITOLOGIA E VIVÊNCIAS HUMANAS). A narrativa nos leva a refletir e a questionar sobre as aventuras do filho de deuses com uma filha de mortais. É importante esclarecer que Psiquê era vista como alma pelos gregos, ou seja, já havia a percepção de uma vida interior. Os desafios e a união desse casal primordial apontam para as potencialidades do amor.
Esse assunto também foi tratado por Platão (O banquete): “Assim, pois, eu afirmo que o Amor é dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após sua morte.”
Platão também esclarece Amor é um requisito para a existência de Afrodite. Existem duas figuras dessa divindade:Urânia ou Celeste e Pandemia ou popular. Assim podemos compreender que há dois tipos de amor: um é mais relacionado com enfoque nos sentidos e na sensualidade. Poderíamos então ligar o amor divino e celeste ao verdadeiro e grande amor pelo sentido maior da vida. Os amores humanos autênticos são decorrentes desse último e não apenas simples interesses de posse ligados ao eu (ego). Esse é o Amor que se inicia com maiúscula para Platão, conforme menciona o editor (*2, p. XXIII): “A construção do conhecimento constitui, assim, no platonismo, uma conjugação de intelecto e emoção, de razão e vontade: a episteme (estudo das ciências e apreciar seu valor para o espírito humano) é fruto de inteligência e Amor.” O amor romântico pode realmente ser a manifestação autêntica desse amor maior.
Platão é um filósofo por vezes mal compreendido, sendo muito mencionado apenas por parte de suas idéias. Reduzir sua noção de amor para algo apenas teórico e abstrato é interpretá-lo parcialmente. Ele apresenta o início de uma consciência reflexiva e a possibilidade de diálogo com a própria alma. Suas obras mostram a ascensão do mundo sensível para o mundo das idéias onde estaria a verdadeira realidade. Mas alerta que a ascensão é feita gradativamente e que o amor dos corpos engendra a imortalidade e a virtude, ou seja, a beleza pela sabedoria começa nas formas concretas e depois dessa percepção trata-se de continuar na ascensão para o mundo das idéias.
Se logos é o conhecimento discursivo e argumentativo, sua noção de “logos erótico” mostra o amor platônico à sabedoria que é atingida com a busca e a ascensão. O motor de tudo isso é o “logos erótico” que começa pelos “belos corpos”, não dispensa essa etapa empírica e concreta, mas continua ascendendo, pois Eros é o desejo de saber.
Estará mais apto para viver um grande amor a pessoa que estiver construindo o encontro interior entre logos e Eros. Quem estiver assim mais inteiro e na construção da sua totalidade estará em condições de não exigir do outro aquilo que ainda não possui. As paixões passageiras constituem uma busca da complementação momentânea do que falta. Entretanto, mesmo com a alternância de diversificadas fases, um amor autêntico pode muito bem ser vivido, funcionando como energia no processo de desenvolvimento individual dos envolvidos.
Não apenas Platão é mais complexo do que parece, mas o mesmo ocorre com muitos outros pensadores e com o sentimento de amor. Este se apresenta de muitas formas, mas é um dos eixos que também move o mundo. A questão do poder muitas vezes prevalece, mas as duas questões são inerentes ao ser humano. Muitas vezes é difícil perceber qual deles está predominando em determinada situação, mas os desdobramentos deixam claro as motivações e o valor que as pessoas usaram para suas ações.
O prosseguir mostra a ascensão ou estagnação de cada etapa. Enquanto isso as pessoas misturam amores e poderes.
Ref.
(1) JUNG, C. G. et al., O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
(2) Coleção Os Pensadores. Platão. Abril Cultural, 1979.
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