08 dezembro 2008

A origem do Vento



O conhecimento do mundo à nossa volta pressupõe certa vontade, atitude e método. Como cada indivíduo apresenta diferentes graus dessas disposições, pode-se concluir que cada um percebe os fatos ao seu modo. Entretanto, alguns requisitos são importantes para que possamos formular idéias com base na experiência, mesmo que ela seja subjetiva. Essa atitude de priorizar os acontecimentos na sua prática e observação, tratando com um pouco mais de cautela a teoria, o dogmatismo e o metodismo tem nome: empirismo.

Mesmo que você já tenha ouvido dizer que empírico é algo baseado na “tentativa e erro”, sem metodologia científica, prefira a versão apontada acima. Muitas pessoas fazem suas observações naturalmente, tentando apreender os fenômenos que ocorrem à sua volta, de forma a ultrapassar a tentação de limitá-los nas suas causas, fazendo a clássica e muitas vezes única pergunta: “Por quê?”

A apreensão do que ocorre à nossa volta não poderia se limitar a esta única pergunta. Muitas vezes é importante ampliarmos o leque de questões, começando com “para quê?” e também “como isso ocorre?” E podemos ir catalogando, memorizando, observando tanto nos detalhes como nos aspectos gerais.

Jung agia dessa forma quando começou a trabalhar com doentes mentais no hospital psiquiátrico de Zurique (Burghölsly) no raiar do século XX, após concluir o curso de medicina. Naquela época não se dava ouvidos para os delírios desses pacientes, pois o meio médico julgava-os portadores de uma “demência precoce”. A equipe coordenada por Bleuler criou nova palavra para citar e definir a patologia: esquizofrenia (cisão + cérebro), passando a perceber o problema não como uma deterioração ou envelhecimento precoce do cérebro e sim uma separação ou algo que não funcionava de forma organizada e coordenada. O doente perdia o contato com a realidade, vivendo num mundo imaginário que para si próprio criava.

Nesse contexto, Jung começou a se interessar por mitologia, pois dava atenção ao discurso dos seus pacientes mesmo que não apresentassem certa lógica. O médico começou a perceber a importância dos conteúdos dos delírios que traziam motivos que se repetiam. Alguns temas também foram observados em sonhos apresentados em diferentes culturas, religiões, artes, contos de fada, folclore e outras manifestações humanas.

Jung agia como bom observador dos fenômenos à sua volta. Atento, circulando pelos corredores em 1906, foi abordado por um paciente que estava internado fazia muitos anos. Esta situação perdurava desde sua juventude e o mesmo não era especialmente bem dotado, apresentando delírios megalomaníacos e normalmente de natureza religiosa. O paciente tinha sido um pequeno comerciário e não desenvolveu sua escolaridade além do ensino médio.

Pois bem, ele estava junto a uma janela e convidou Jung para que participasse da sua visão. Muito compenetrado, sugeriu que o médico piscasse em direção ao Sol, balançando a cabeça. Como um sábio místico ensinando ao seu discípulo, esclareceu que assim seria visto algo muito importante. Com sensibilidade, Jung perguntou-lhe o que estava vendo, recebendo como resposta: “O senhor está vendo o pênis do Sol – quando movo a cabeça de um lado para o outro ele também se move e esta é a origem do vento”. Jung nada compreendeu dessa estranha idéia, mas, como empirista, tratou de anotá-la.

Quatro anos mais tarde, estudando mitologia, Jung descobriu um livro de Albrecht Dieterich lançado em 1903 (o paciente fora hospitalizado algum tempo antes) que esclarecia a fantasia. O autor era conhecido filólogo que pesquisara um papiro grego, mostrando texto com a prescrição religiosa para se fazer invocações a Mitra. Essa entidade era uma divindade solar persa de uma religião de mistérios surgida na época helenística (provavelmente no séc II a.C. que se difundiu nos séculos seguintes no império romano). As instruções do texto eram:

“Procura nos raios a respiração, inspira três vezes tão fortemente quanto puderes e sentir-te-ás erguido e caminhando para o alto, de forma que acreditarás estar no meio de região aérea... O caminho dos deuses visíveis aparecerá através do Sol, o Deus, meu pai; do mesmo modo, tornar-se-á visível também o assim chamado tubo, a origem do vento propiciatório. Pois verás pendente do disco solar algo semelhante a um tubo. E rumo às regiões do oeste, um contínuo vento leste; se o outro vento prevalecer em direção ao leste, verás, de modo semelhante, a face movendo-se nas direções do vento”.

Esse acontecimento não pode ser creditado a qualquer coincidência, mesmo se considerarmos que os motivos de Sol, Deus, vento e espírito são representações coletivas mostradas em várias religiões, incluindo os mistérios de Ísis no antigo Egito. Por serem humanos e gerais, esses temas também foram mostrados em pinturas medievais. Como mencionou Jung (*1, par 109), é fora de cogitação que o paciente tenha tido algum contato com o papiro ou a obra do filólogo. Afinal, “o paciente foi declarado doente mental aos vinte anos de idade. Nunca viajara. Em sua cidade natal, Zurique, não há qualquer galeria de arte pública que expusesse um tal quadro.” Ou qualquer quadro pintado na idade média.

Para Jung esse fato não prova a existência de um arquétipo ou do inconsciente coletivo, mas foi uma experiência marcante no desenvolvimento desses conceitos. Ele sistematizou o trabalho com os símbolos, percebendo que muitos deles podem ser reconhecidos como fenômenos típicos. Eles podiam ser isolados com clareza através de exames de uma série de sonhos e do seu próprio desenvolvimento dentro da série. O método comparativo de observação e trabalho foi adotado baseado nas observações práticas. A riqueza do material colhido era cientificamente instigante, prestando-se a um estudo comparativo e de acompanhamento das variações e modificações dos motivos mitológicos.

Desde que Freud mencionou os “resíduos arcaicos”, apenas Jung desenvolveu estudos nessa direção, chegando aos importantes conceitos mencionados. Eles exigem tempo e disposição para tentarmos assimilar toda a sua magnitude.

É uma boa técnica ir se aproximando e acostumando com esses termos calmamente, pois a tentativa de uma definição teórica, científica, linear e simplificada se mostrará insuficiente. A compreensão do que é humano ultrapassa o campo das teorias e pode muito bem ser observado na vida prática – tanto individual como coletiva.

De onde o paciente de Burghölsly tirou a imagem do falo solar? É como se a sua psique mostrasse fragmentos de conteúdos soltos participantes dos seus delírios, mas que certamente estavam na no seu interior por se tratar de uma mente humana. Mas como alertou Jung (*2, par.224), “Esta observação não ficou isolada: naturalmente não se trata de idéias hereditárias, e sim de uma predisposição inata para a criação de fantasias paralelas, de estruturas idênticas, universais, da psique, que mais tarde chamei de inconsciente coletivo. Dei a estas estruturas o nome de arquétipos”.

Os arquétipos seriam os elementos básicos do inconsciente coletivo, estrutura que recebemos ao nascer da mesma forma que o corpo biológico – espelhando toda a experiência anterior da humanidade tanto em termos de corpo como de psique. Por que apenas o corpo contaria a sua história desde os primórdios como se fosse um museu ambulante de órgãos?

A menção de corpo e psique lembra imediatamente a forte ligação entre arquétipo e instinto. Cada um se prontificando para as ações humanas, tanto corporais como psicológicas.


Ref.
(1). JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. O.c. vol. IX/1.
(2). JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 1999. O.c. vol. V.

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