Os mistérios das Minas foram decantados pelo sensível ficcionista Guimarães Rosa. Quanto mais ele cresceu para o mundo mais se aprofundou na sua própria terra, conhecendo sua gente e seus campos ilimitados e Gerais.
“...Mas eu queria que a madrugada viesse. Dia quente, noite fria... eu dormia logo. Sonhava. Só sonho, mal ou bem, livrado. Eu tinha uma lua recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros pássaros... Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um bem-te-vi só... - Gente! Não se acha até que ele é sempre um, em mesmo?... E permaneci duvidando que seria – que era um bem-te-vi, exato, perseguindo minha vida em vez, me acusando de más-horas que eu ainda não tinha procedido. Até hoje é assim...” (*1, p. 30).
Coisas de Minas, onde existe um jeito especial de perceber e se relacionar com o mundo. O detalhe pode ganhar importância vital e os grandes fatos vistos com certa despretensão. Depende do momento, da inspiração, do vento, da natureza em volta. Tudo é percebido na doce mistura de sensação e intuição.
Sim, o mineiro autêntico se aproxima do objeto para percebê-lo com os cinco sentidos. Em cada situação ele parece ver, tocar, ouvir, cheirar e degustar o objeto da sua (des)atenção. Depois ele se afasta calmamente e começa a apreciar à distância. Tudo isso pode ser muito rápido. Ou não, depende da ocasião. E assim ele faz uma avaliação mais geral, deixa fluir sua intuição e tenta perceber de onde veio tudo aquilo e qual é o seu destino.
Avaliação de mineiro é assim – é por inteiro, no total. E nem por isso ele vai gostar de dizer sua opinião. Essa é só dele, a princípio. E assim ele vai vivendo junto com a natureza, integrando-se com os seus detalhes.
E você já viu um mineiro jogando truco? Aí ocorre o refinamento das artes teatrais, mostrando as inversões mais absurdas. Daquela carinha de aparente necessidade de auxílio surge a jogada final surpreendente e vitoriosa. Assim o jogo vira festa, vale subir na cadeira e até na mesa, numa euforia gritante e desequilibrada.
Meu amigo Carmélio era mestre nessas pelejas. Se deixassem que ele embaralhasse as cartas, podendo vê-las enquanto as manuseava, saberia a ordem completa à medida que o jogo fosse transcorrendo. Como? Não sei. Era assim. Ele era pessoa simples, sem muitos estudos, dava aulas de sensibilidade e sintonia com o mundo. Estava à frente do seu tempo, adorava desafios, novidades e trabalho.
De vez em quando eu ia até sua fazenda para usufruir do bom papo e calor humano, tudo isso com a desculpa de uma rápida pescaria nas lagoas provisórias das águas do Rio das Mortes. Essa era a fazenda Santa Lúcia, orgulho da família. Mas de certa vez ficamos restritos ao interior da casa-sede até não mais poder, pois a chuva não dava trégua. Depois de algumas rodadas de truco, divertindo-se a valer, mesmo sem deixar isso muito claro, ele se entusiasmou: “- Pessoal, vamos fechar o jogo e preparar a rede. A chuva já está passando... a pescaria será muito boa!”
A afirmativa categórica surpreendeu todo o grupo de amigos. Questionado, Carmélio perguntou se não ouvimos o canto do galo. Cada um vasculhou sua memória de curto e médio prazo e até nos cantos mais profundos. Alguns lembraram de ter ouvido a manifestação do rei do terreiro. E aí, o anfitrião, pescador e truqueiro, afirmou: “Se o galo canta desse jeito é porque a chuva está indo embora!”
Dez minutos após estávamos de saída, eufóricos para mais uma pescaria bem sucedida e plena de alegrias com o pesado troféu de lambaris, traíras, acarás e outros pequenos nadadores. E como bônus a mineirice da paisagem com coqueiros, rio, córrego, montanhas e os trilhos da “Maria-fumaça”, que cruzavam a região beira-rio da fazenda, onde se encontram os dois rios das Mortes: grande e pequeno. Um cenário encantador.
Muitos anos se passaram após essas marcantes vivências. O que fica registrado com mais energia na nossa memória é aquilo que toca nas profundezas do nosso ser e no nosso coração. Essas são as marcas que nos acompanham pelo resto da vida.
O prosseguir por vezes traz surpresas e ligações com o passado (e o futuro!). Vieram assim os estudos da Psicologia Analítica que mostram as ligações de tudo que é humano e universal. Muitos aspectos ligam todos os homens como se a humanidade fosse realmente uma só família. É encantador verificar os laços humanos na mitologia, artes, culturas, religiões, sonhos, folclore – tudo isso nos conduz ao mesmo rio na busca do mar comum a todos.
Jung encontrou forte componente histórico na Alquimia para ilustrar suas concepções sobre a Psicologia Analítica. É um estudo complexo e que mostra a sabedoria que esteve sempre disponível na história da humanidade, mostrando que a Psicologia Analítica tem seus paralelos e bases com o desenvolvimento do conhecimento do homem. Assim Jung valorizou imensamente o trabalho de Paracelso (1493-1541, médico, alquimista, físico e astrólogo) e cita algumas concepções (*2, p. 129-131):
A idéia das centelhas (scintillae) como sementes de luz que provinham do caos e da mente humana, estando assim presentes tanto no exterior como no interior de cada pessoa. Essa centelha de luz esclarece e ilumina o ser humano nos momentos difíceis e obscuros, ou seja, ele tem esse potencial criativo. E todas as coisas da natureza trazem, em níveis diferentes, essa centelha para a realização da vida. A sua percepção englobava a certeza de que tudo na natureza, incluindo os animais, tinham um certo “brilho” que dignificava sua própria existência.
No que diz respeito aos homens, esta visão pode ser comparada com a versão filosófica dos arché (a priori) das imagens eternas de Platão. Desse mundo das idéias vem a capacidade de verificação das “cópias” no mundo sensível e dos objetos. Esta noção mostra que os arquétipos possuem em si certo brilho ou semelhança com a consciência, realçando os conceitos de lúmen (relativo à luz) e númen (como se fosse algo mais brilhante que a luz, ou seja, percebido como divino). Estas centelhas surgem como inspirações e têm a propriedade de poder ampliar a consciência, trazendo assim novas possibilidades de vivências, enriquecendo a existência do ser humano. Cita Paracelso: “E do mesmo modo como no homem não pode existir nada sem o númen divino, assim também nada pode existir no homem sem o lúmen natural. São estas duas únicas partes: o númen e o lúmen que tornam o homem perfeito.” O assunto é complexo e ao mesmo tempo encantador.
Com os significados e menções ao longo da história desses termos por vários estudiosos, Jung foi verificando o embasamento para suas concepções práticas dos arquétipos e do Si-mesmo. Ele percebia nas pessoas a dinâmica entre o mundo interior e a vida prática das pessoas.
Prossegue Paracelso: “a estrela deseja levar o homem para a grande sabedoria... para que ele apareça maravilhoso na luz da natureza, e os mistérios da maravilhosa obra de Deus sejam descobertos e revelados em sua grandeza.” Ele compara cada homem com um astro e é como se o homem extraísse sua luz de uma estrela maior, sendo necessário que cada um venha a nascer para essa estrela. Menção parecida é feita por Mateus 5, 14: “Vós sois a luz do mundo.”
É importante observar que o homem é elevado assim a uma condição de um astro que recebe e proporciona luz, pois ele é “dotado com a luz perfeita da natureza”, sendo este o tesouro que encerra dentro de si.
Nesta concepção alquímica, a luz da natureza está sempre presente e tudo engloba. “Os animais também possuem a luz natural que é um ‘espírito inato.’” Como ilustração desse estado de participação...... “como os galos que anunciam com seu canto as futuras condições meteorológicas....”
Nesse ponto da leitura, sou inclinado a fechar o livro e os olhos. Há algo de humano compartilhado e sem as delimitações de tempo, espaço e cultura. Carmélio e seu galo meteorologista interagiam porque os canais estavam interligados e disponíveis naquela pessoa sintonizada com as coisas do mundo. Sua percepção através de outras funções que não o pensamento e o sentimento permitiam esse contato maior e mais amplo com a natureza assim disponível e iluminada por essa luz interior.
Certamente aquele amigo não teve contato algum com tratados alquímicos ou filosóficos, mas trazia dentro de si, cultivada e muito acesa, a luz e o númen inerentes ao ser humano. E que muitas vezes são desprezados, mas que podem ser despertados e liberados por um galo meteorologista!
A linguagem da natureza pode ser compreendida pelas pessoas sensíveis. Como disse Guimarães Rosa: “Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria.” O poeta cresceu em direção ao macrocosmo e retornou para a vivência também do seu microcosmo e do próprio interior.
Ref.
(1). GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
(2) JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2000. O.C. vol VIII/2.
“...Mas eu queria que a madrugada viesse. Dia quente, noite fria... eu dormia logo. Sonhava. Só sonho, mal ou bem, livrado. Eu tinha uma lua recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros pássaros... Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um bem-te-vi só... - Gente! Não se acha até que ele é sempre um, em mesmo?... E permaneci duvidando que seria – que era um bem-te-vi, exato, perseguindo minha vida em vez, me acusando de más-horas que eu ainda não tinha procedido. Até hoje é assim...” (*1, p. 30).
Coisas de Minas, onde existe um jeito especial de perceber e se relacionar com o mundo. O detalhe pode ganhar importância vital e os grandes fatos vistos com certa despretensão. Depende do momento, da inspiração, do vento, da natureza em volta. Tudo é percebido na doce mistura de sensação e intuição.
Sim, o mineiro autêntico se aproxima do objeto para percebê-lo com os cinco sentidos. Em cada situação ele parece ver, tocar, ouvir, cheirar e degustar o objeto da sua (des)atenção. Depois ele se afasta calmamente e começa a apreciar à distância. Tudo isso pode ser muito rápido. Ou não, depende da ocasião. E assim ele faz uma avaliação mais geral, deixa fluir sua intuição e tenta perceber de onde veio tudo aquilo e qual é o seu destino.
Avaliação de mineiro é assim – é por inteiro, no total. E nem por isso ele vai gostar de dizer sua opinião. Essa é só dele, a princípio. E assim ele vai vivendo junto com a natureza, integrando-se com os seus detalhes.
E você já viu um mineiro jogando truco? Aí ocorre o refinamento das artes teatrais, mostrando as inversões mais absurdas. Daquela carinha de aparente necessidade de auxílio surge a jogada final surpreendente e vitoriosa. Assim o jogo vira festa, vale subir na cadeira e até na mesa, numa euforia gritante e desequilibrada.
Meu amigo Carmélio era mestre nessas pelejas. Se deixassem que ele embaralhasse as cartas, podendo vê-las enquanto as manuseava, saberia a ordem completa à medida que o jogo fosse transcorrendo. Como? Não sei. Era assim. Ele era pessoa simples, sem muitos estudos, dava aulas de sensibilidade e sintonia com o mundo. Estava à frente do seu tempo, adorava desafios, novidades e trabalho.
De vez em quando eu ia até sua fazenda para usufruir do bom papo e calor humano, tudo isso com a desculpa de uma rápida pescaria nas lagoas provisórias das águas do Rio das Mortes. Essa era a fazenda Santa Lúcia, orgulho da família. Mas de certa vez ficamos restritos ao interior da casa-sede até não mais poder, pois a chuva não dava trégua. Depois de algumas rodadas de truco, divertindo-se a valer, mesmo sem deixar isso muito claro, ele se entusiasmou: “- Pessoal, vamos fechar o jogo e preparar a rede. A chuva já está passando... a pescaria será muito boa!”
A afirmativa categórica surpreendeu todo o grupo de amigos. Questionado, Carmélio perguntou se não ouvimos o canto do galo. Cada um vasculhou sua memória de curto e médio prazo e até nos cantos mais profundos. Alguns lembraram de ter ouvido a manifestação do rei do terreiro. E aí, o anfitrião, pescador e truqueiro, afirmou: “Se o galo canta desse jeito é porque a chuva está indo embora!”
Dez minutos após estávamos de saída, eufóricos para mais uma pescaria bem sucedida e plena de alegrias com o pesado troféu de lambaris, traíras, acarás e outros pequenos nadadores. E como bônus a mineirice da paisagem com coqueiros, rio, córrego, montanhas e os trilhos da “Maria-fumaça”, que cruzavam a região beira-rio da fazenda, onde se encontram os dois rios das Mortes: grande e pequeno. Um cenário encantador.
Muitos anos se passaram após essas marcantes vivências. O que fica registrado com mais energia na nossa memória é aquilo que toca nas profundezas do nosso ser e no nosso coração. Essas são as marcas que nos acompanham pelo resto da vida.
O prosseguir por vezes traz surpresas e ligações com o passado (e o futuro!). Vieram assim os estudos da Psicologia Analítica que mostram as ligações de tudo que é humano e universal. Muitos aspectos ligam todos os homens como se a humanidade fosse realmente uma só família. É encantador verificar os laços humanos na mitologia, artes, culturas, religiões, sonhos, folclore – tudo isso nos conduz ao mesmo rio na busca do mar comum a todos.
Jung encontrou forte componente histórico na Alquimia para ilustrar suas concepções sobre a Psicologia Analítica. É um estudo complexo e que mostra a sabedoria que esteve sempre disponível na história da humanidade, mostrando que a Psicologia Analítica tem seus paralelos e bases com o desenvolvimento do conhecimento do homem. Assim Jung valorizou imensamente o trabalho de Paracelso (1493-1541, médico, alquimista, físico e astrólogo) e cita algumas concepções (*2, p. 129-131):
A idéia das centelhas (scintillae) como sementes de luz que provinham do caos e da mente humana, estando assim presentes tanto no exterior como no interior de cada pessoa. Essa centelha de luz esclarece e ilumina o ser humano nos momentos difíceis e obscuros, ou seja, ele tem esse potencial criativo. E todas as coisas da natureza trazem, em níveis diferentes, essa centelha para a realização da vida. A sua percepção englobava a certeza de que tudo na natureza, incluindo os animais, tinham um certo “brilho” que dignificava sua própria existência.
No que diz respeito aos homens, esta visão pode ser comparada com a versão filosófica dos arché (a priori) das imagens eternas de Platão. Desse mundo das idéias vem a capacidade de verificação das “cópias” no mundo sensível e dos objetos. Esta noção mostra que os arquétipos possuem em si certo brilho ou semelhança com a consciência, realçando os conceitos de lúmen (relativo à luz) e númen (como se fosse algo mais brilhante que a luz, ou seja, percebido como divino). Estas centelhas surgem como inspirações e têm a propriedade de poder ampliar a consciência, trazendo assim novas possibilidades de vivências, enriquecendo a existência do ser humano. Cita Paracelso: “E do mesmo modo como no homem não pode existir nada sem o númen divino, assim também nada pode existir no homem sem o lúmen natural. São estas duas únicas partes: o númen e o lúmen que tornam o homem perfeito.” O assunto é complexo e ao mesmo tempo encantador.
Com os significados e menções ao longo da história desses termos por vários estudiosos, Jung foi verificando o embasamento para suas concepções práticas dos arquétipos e do Si-mesmo. Ele percebia nas pessoas a dinâmica entre o mundo interior e a vida prática das pessoas.
Prossegue Paracelso: “a estrela deseja levar o homem para a grande sabedoria... para que ele apareça maravilhoso na luz da natureza, e os mistérios da maravilhosa obra de Deus sejam descobertos e revelados em sua grandeza.” Ele compara cada homem com um astro e é como se o homem extraísse sua luz de uma estrela maior, sendo necessário que cada um venha a nascer para essa estrela. Menção parecida é feita por Mateus 5, 14: “Vós sois a luz do mundo.”
É importante observar que o homem é elevado assim a uma condição de um astro que recebe e proporciona luz, pois ele é “dotado com a luz perfeita da natureza”, sendo este o tesouro que encerra dentro de si.
Nesta concepção alquímica, a luz da natureza está sempre presente e tudo engloba. “Os animais também possuem a luz natural que é um ‘espírito inato.’” Como ilustração desse estado de participação...... “como os galos que anunciam com seu canto as futuras condições meteorológicas....”
Nesse ponto da leitura, sou inclinado a fechar o livro e os olhos. Há algo de humano compartilhado e sem as delimitações de tempo, espaço e cultura. Carmélio e seu galo meteorologista interagiam porque os canais estavam interligados e disponíveis naquela pessoa sintonizada com as coisas do mundo. Sua percepção através de outras funções que não o pensamento e o sentimento permitiam esse contato maior e mais amplo com a natureza assim disponível e iluminada por essa luz interior.
Certamente aquele amigo não teve contato algum com tratados alquímicos ou filosóficos, mas trazia dentro de si, cultivada e muito acesa, a luz e o númen inerentes ao ser humano. E que muitas vezes são desprezados, mas que podem ser despertados e liberados por um galo meteorologista!
A linguagem da natureza pode ser compreendida pelas pessoas sensíveis. Como disse Guimarães Rosa: “Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria.” O poeta cresceu em direção ao macrocosmo e retornou para a vivência também do seu microcosmo e do próprio interior.
Ref.
(1). GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
(2) JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2000. O.C. vol VIII/2.
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