24 fevereiro 2009

A Caverna (1). Platão.




Obs: 1) O último artigo (Nise da Silveira) sofreu pequenas correções e já está no blog.

2) Agora teremos uma sequência de 4 artigos sobre o tema da caverna. O próximo não deverá ser enviado por email, ficando disponível no blog. Bom proveito!


Vamos ao primeiro deles:


Esse tema é realmente marcante para muitos povos e culturas. Em nosso país, percebemos nas diversas regiões como as pessoas ficam tocadas e sensibilizadas ao apreciar a magia que reina no interior de uma caverna, despertando a liberação plena da imaginação e da fantasia.

No interior de Minas, a religiosidade faz as estreitas ligações com o assunto, despertando as questões mais íntimas. Muito além do turismo, as pessoas locais ligam-se com muita energia às reminiscências trazidas pela Gruta de Maquiné (Cordisburgo-MG) e na Casa de Pedra em São João del Rei (MG) , por exemplo. As ligações e associações são profundas, começando pelo nascimento de Jesus numa gruta, assim como também foi em local parecido que seu corpo permaneceu, após o calvário, até a Ressurreição. Pelo seu formato, lembram também as capelinhas, os oratórios e santuários – símbolos próprios para certa reflexão e contato interior.

As comemorações natalinas são marcantes no interior do país. Em Minas, os filhos são estimulados pelos pais a participar da montagem dos presépios onde a gruta aparece de forma predominante, enfeitada acima com malacacheta ou mica (grupo de minerais que se separam facilmente em folhas muito finas), musgos, pedras e outros produtos encontrados na natureza. Após a montagem final, todos ficam admirados e agradecidos por verem aqueles componentes básicos formarem um conjunto tão harmonioso e sagrado, estimulando a espiritualidade e a fé.

Em muitas culturas a caverna aparece como local apropriado para o nascimento e o renascimento, considerado como receptáculo de energia telúrica (associada à Terra). Por estar normalmente incrustada em elevação ou área montanhosa, esse conjunto desperta a associação com o local propício aos deuses em muitos povos. Muitas nações indígenas consideram as montanhas como local sagrado que nem mesmo deve ser freqüentado. Como exemplo no Brasil, os ianomâmis estimulavam a ida de garimpeiros nas altitudes do Pico da Neblina, pois eles mesmos não freqüentavam essa área montanhosa. Na Grécia antiga, a organização divina feita por Zeus tinha como base o monte Olimpo.

A caverna também está relacionada ao sentido de chegada e de partida, entrada e saída da vida, lembrando a importância do útero materno e do acolhimento necessário para as transformações. A Grande Mãe participa com seu princípio gerador e nutridor, propiciando também os incentivos para o crescimento; desse princípio sai a vida que também a ele retorna após cumprir a sua jornada.

O apelo torna-se cada vez mais potente à medida que avançamos nos esclarecimentos, de forma a mostrar a sua importância universal. Como um retorno à origem, a caverna também é um local de regeneração. Entrar nesse ambiente pode significar uma volta ao início, podendo então “subir ao céu”, ultrapassar o cosmo da própria consciência. A caverna se apresenta como um local de passagem tanto da terra para o céu como o caminho inverso (no sonho bíblico de Jacó anjos subiam e desciam pela escada que ligava ao céu).

No interior da caverna existem os perigos do desconhecido, pois é uma região sombria e subterrânea de limites invisíveis, lembrando um temível abismo de onde podem surgir os monstros. Aqui encontramos os dois aspectos – positivo e negativo – de todo grande símbolo, e o paralelo inevitável do mundo do inconsciente, de onde viemos (eu – ego) e para onde retornaremos. Essa volta já é sinalizada em cada noite quando, ao dormir, fazemos esta passagem transitória pelo mundo do inconsciente.

Há lendas a respeito de cavernas entre muitos povos indígenas. Em regiões do Oriente este tema é também reincidente. Na Grécia ele ganha um realce especial, já nos lembrando Chevalier (*) que: “Toda a tradição grega une estreitamente o simbolismo metafísico e o simbolismo moral: a construção de um eu harmonioso faz-se à imagem de um cosmo harmonioso. A organização do eu interior e sua relação com o mundo exterior é concomitante.” Os gregos desenvolviam uma impressionante noção de conjunto e de totalidade, uma visão do organismo pessoal, social e espiritual. Tudo muito aproximado e participante da plena vida.

O filósofo Platão (A República, livro VII) que, há quase 2.500 anos, nos brinda com o seu famoso Mito da Caverna. A narrativa mostra que homens estão, desde a sua infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço de modo a não poderem movimentar nem mesmo a cabeça, permanecendo de costas para a entrada da caverna. Estão assim imobilizados e com o campo visual limitado, somente percebendo as sombras nas paredes internas projetadas pela luz de uma fogueira que arde atrás deles.

A caverna é assim a imagem do mundo, mostrando a situação extremamente limitada do homem na Terra. “A luz indireta que ilumina suas paredes provém de um sol invisível; mas indica o caminho que a alma deve seguir a fim de encontrar o bem e a verdade: a subida para o alto e a contemplação daquilo que existe no alto representam o caminho da alma para elevar-se em direção ao lugar inteligível. Em Platão, o simbolismo da caverna implica portanto uma significação não apenas cósmica, mas também ética e moral. A caverna e seus espetáculos de sombras ou de fantoches representam esse mundo de aparências agitadas, do qual a alma deve sair para contemplar o verdadeiro mundo das realidades – o mundo das idéias”.
Os prisioneiros percebiam como sua única realidade as sombras projetadas nas paredes: deles próprios, dos outros homens acorrentados e também daqueles que, nas suas costas, mantinham a fogueira acesa. Com estes eles não tinham contato visual direto, e nem podiam imaginar que o Sol lá fora inundava a Terra com sua estonteante luminosidade. Um dos prisioneiros decide abandonar essa condição e fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões. Aos poucos vai se movendo e avança na direção de um muro e o escala; com dificuldade enfrenta os obstáculos que encontra e sai da caverna. Em liberdade, descobre não apenas que as sombras eram feitas por homens como ele, mas também que provinham de todo o mundo de natureza até então desconhecida. Encanta-se com coisas nunca vistas e com o esplendor do Sol. A adaptação nesse outro mundo precisa ser gradual, pois a luminosidade e as possibilidades de ampliação do conhecimento são impressionantes. Nesse contexto, surge a indagação crucial: e se este homem retornasse para contar aos seus companheiros tudo o que descobrira, como seria interpretado? Um mentiroso ou alguém dominado pela fantasia?

Provavelmente Platão se referia indiretamente aos seus contemporâneos com suas crenças e superstições. Ele fugia das amarras comuns que prendem o homem e partia para uma compreensão mais ampla do mundo. Segundo a metáfora, “o processo para a obtenção da consciência abrange dois domínios: o domínio das coisas sensíveis (eikasia e pístis) e o domínio das idéias (diánoia e nóesis). Para o filósofo, a realidade está no mundo das idéias e a maioria da humanidade vive na condição da ignorância, no mundo ilusório das coisas sensíveis, no grau da apreensão de imagens (eikasia), as quais são imutáveis, não são funcionais e, por isso, não são objetos de conhecimento”.

Mesmo o empirista mais dedicado sabe que não pode perceber, apreender ou compreender a totalidade dos fatos e do mundo concreto. Para conhecer melhor a realidade certamente é preciso percebermos melhor os objetos e o cenário do mundo exterior. Mas, nessa compreensão, terão enorme influência o modo como funcionamos no nosso interior, ou seja, como estamos captando esses sinais e imagens, pois estarão influenciando nessa apercepção nossos pensamentos, fantasias, inclinações, imagens, intuições e inspirações.

Ter a noção das limitação pessoais certamente é um início da longa caminhada no “processo de individuação” e crescimento pessoal. O forte simbolismo da caverna mostra as possibilidades de uma constante gestação de seres com maior ampliação da sua própria consciência. Parece ser essa a meta da vida, como podemos perceber nas diferentes culturas.


Ref.
* CHEVALIER, Jean e Gheerbrant A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

Um comentário:

Anônimo disse...

Uau! Esse primeiro artigo já me surpreendeu, pois não imaginava ver um resumo tão interessante do Mito da Caverna de Platão. Já estou aguardando os próximos! Será continuidade ou assuntos paralelos? Quero saber logo!