23 março 2009

Dar um tempo no Blog




Resolvemos fazer uma parada estratégica e temporária nos nossos artigos.

Eles foram feitos com muita dedicação e entusiasmo. Entretanto não sabemos como estão sendo percebidos pelos leitores, pois apenas alguns nos deram retorno sobre suas impressões. Na realidade não sabemos se a medida estava certa, se poderíamos aprofundar mais alguns conceitos e idéias ou se seria melhor elaborar artigos mais leves.

Ocorre ainda que precisamos dedicar nosso tempo atual a um antigo projeto:

“Grande Sertão: Uma Travessia Arquetípica”.

Isso mesmo, pretendemos fazer uma leitura da obra maravilhosa de Guimarães Rosa com a referência da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Acreditamos que o resultado poderá ser gratificante. O projeto é a amplificação de uma monografia já apresentada num curso de pós-graduação.

Como aperitivo, eis algumas citações do grande Rosa nessa sua obra:

“Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água - carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (p. 289). Instigante relação entre a árvore símbolo do cerrado e do sertão brasileiros na sua necessidade de “espelho”, o que também ocorre com o bom professor que se vê no aluno. Ele não pode ser uma ameaça e sim a possibilidade de crescimento de ambas as partes! E a dinâmica da aprendizagem sempre atinge o EDUCADOR. Na realidade, nem todo professor é um educador, mas seria esse o grande ideal!!! E Rosa deve ter se referido a essa diferença.


“O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. (p. 21). Está aí apresentada uma deixa para o processo de construção de uma individualidade que leva toda uma vida: o Processo de Individuação – conceito basilar de Jung na sua psicologia.

“Qual é o caminho certo da gente? Nem para frente, nem para trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito esperando? Mas quem é que sabe como? Viver ..... o senhor já sabe: viver é etcétera.” (p. 87).

“O ruim com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera essa gastança. Moço: Deus é paciência ... Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola ... tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece. Deus não arrocha o regulamento. Deixa: bobo com bobo – um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta (p. 16).

E, para finalizar, uma pequena amostra da gente do seu sertão e dos seus Gerais: “Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo ... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa ... para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” (p. 14).

Após essa pequena mostra da capacidade impressionante de comunicação de Rosa, tentando unir o sertão interior e o exterior, fazemos nossa despedida. Que não seja por muito tempo...

E se você quiser se comunicar, dar sugestões, comentar......... o que for, entre em contato:

Kairos800@yahoo.com.br

Um grande abraço!

Bosco e Ingrid

20 março 2009

Aedos e Rapsodos (4) - Cora Coralina



“Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.”


Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nascida em 20 de agosto de 1889 na cidade de Goiânia, foi uma das mais populares poetisas e contistas brasileiras. Coralina era uma mulher simples, doceira de profissão, que viveu na pequena cidadezinha chamada Goiás, sendo a responsável por uma obra poética rica em motivos cotidianos do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de sua cidade natal. Na introdução do seu livro “Vintém de Cobre”, é mostrado o papel preponderante que os poetas têm para com seus semelhantes. Eles são os aedos e rapsodos de nosso tempo, que só futuramente poderão ser melhor compreendidos.

“A cidade de Goiás, antiga Vila-Bôa de Goyas .......................................Encravada as margens do Rio Vermelho, num vale cercado por colinas, impossibilitada fisicamente de expandir-se, a cidade acabou por assumir um ar romântico imposto por contingências históricas e por força de sua situação geográfica.................

Este costume de os mais velhos contarem casos para as crianças, ao entardecer, é um fato psicológico que deve ser realçado como elemento provocador, por excelência, da imaginação criadora dos vilaboenses.

O “contar casos” se constitui numa tradição familiar de nossos ancestrais que Cora Coralina faz reviver em sua obra com toda a pujança de seu poder criador. Em seus poemas, encontramos o estilo oral desses “casos”, sem invencionices literárias gravadas com pretensões sofisticadas, mas com a aparente simplicidade que caracteriza a sua obra poética.

É em Vintém de Cobra, Meias Confissões de Aninha, que a poesia de Cora Coralina se realiza como o elo de permanência da tradição que vem dos tempos passados em busca da afirmação de uma brasilidade futura conforme palavras da própria autora: “ Geração ponte, eu fui, posso contar.”

Cora Coralina nasceu e foi criada às margens do rio Vermelho, num velho casarão do século XIX. Escreveu seus primeiros poemas aos quatorze anos de idade, tendo sido publicados somente em jornais da sua cidade. Sua escolaridade resumia-se nas primeiras quatro séries do então curso primário (ensino fundamental).

Ela casou-se em 1910 com o advogado Cantídio Tolentino Bretas, com quem se mudou, no ano seguinte, para o interior de São Paulo. Aí viveu com a família por quarenta e cinco anos. Segundo a poetisa, ao completar cinqüenta anos de idade, passou por intensa transformação interior, definida por ela posteriormente como "a perda do medo". Nesta época passou a usar o pseudônimo com o qual se tornou conhecida. Em 1956, ficando viúva, retornou para Goiás. Durante esses anos, Cora não deixou de escrever poemas relacionados com a sua história pessoal, com a cidade em que nasceu e com ambiente em que foi criada.

“O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher.”

“O saber se aprende com os mestres. A sabedoria, só com o corriqueiro da vida.”

“Não sei ...se a vida é curta ou longa demais para nós,

Mas sei que nada do que vivemos

Tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.”

Ela usou como fonte de inspiração os elementos folclóricos que faziam parte de seu cotidiano. Através de seus versos se fez conhecer em todo Brasil, servindo de exemplo e inspiração para tantos que conviveram com esta grande artista.

Cora Carolina morreu, na cidade de Goiânia, em 10 de abril de 1985. A sua casa na Cidade de Goiás foi transformada num museu em homenagem à sua história de vida e produção literária.

“Aninha e suas pedras

Não te deixes destruir...

Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha

um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

Toma a tua parte.

Vem a estas páginas

e não entraves seu uso aos que têm sede.”


Carta de Carlos Drummond de Andrade para Cora Coralina:

Rio de Janeiro, 7 de outubro, 1983.

Minha querida amiga Cora Coralina:

Seu “Vintém de Cobre” é, para mim, moeda de ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não se pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia (...).

Não lhe escrevi antes, agradecendo a dádiva, porque andei malacafento e me submeti a uma cirurgia. Mas agora, já recuperado, estou em condições de dizer, com alegria justa: Obrigado, minha amiga! Obrigado, também pelas lindas, tocantes palavras que escreveu para mim e que guardarei na memória do coração.

O beijo e o carinho do seu

Drummond

Aedos e Rapsodos (3) - Cecília Meireles


Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu em 7 de novembro de 1901, no bairro da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. Devido ao falecimento prematuro de seus pais foi criada por sua avó, D. Jacinta Garcia Benevides. Cecília Meireles escreveria mais tarde sobre este triste acontecimento tão marcante para sua infância e vida:

"Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno.”

(...) Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.

(...) Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano."

Em 1917, Cecília Meireles formou-se no Curso Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, tornando-se professora do curso primário. Dois anos depois, em 1919, publicou seu primeiro livro de poesias, "Espectro". Seguiram-se "Nunca mais... e Poema dos Poemas", em 1923, e "Baladas para El-Rei em 1925. Caracterizou-se como escritora habilidosa, possuindo grande fluência vocabular e riqueza de imagens reflexivas e filosóficas. Abordou temas como a transitoriedade da vida, o efêmero, o amor, o infinito e a natureza. De forte influência simbólica, fez uso de temas como os elementos (água, ar, terra e fogo), além de vento, mar, tempo e espaço para composição de suas poesias. Cecília teve uma brilhante carreira como poetisa, professora, pedagoga e jornalista. Foi casada duas vezes e teve três filhas.

“Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdidaa minha face?”

Em 1934 fundou a biblioteca Infantil do Rio de Janeiro e começou a ensinar Literatura Brasileira em Lisboa e Coimbra (Portugal). Em 1936, passou a lecionar Literatura Brasileira na recém fundada Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além da vitoriosa carreira como professora, continuou publicando inúmeros livros de poesia e prosa sobre temas pedagógicos, folclóricos e infantis.

“Atitude
Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.

Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.
E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.”

Cecília Meireles morreu no Rio de Janeiro em 9 de novembro de 1964. No ano seguinte, o Governo do então Estado da Guanabara a homenageou dando o nome de Sala Cecília Meireles a um grande salão de concertos e conferências do Largo da Lapa.

Sua poesia foi assim julgada pelo respeitadíssimo crítico Paulo Rónai:

"Considero o lirismo de Cecília Meireles o mais elevado da moderna poesia de língua portuguesa. Nenhum outro poeta iguala o seu desprendimento, a sua fluidez, o seu poder transfigurador, a sua simplicidade e seu preciosismo, porque Cecília, só ela, se acerca da nossa poesia primitiva e do nosso lirismo espontâneo... A poesia de Cecília Meireles é uma das mais puras, belas e válidas manifestações da literatura contemporânea.”

“Sonhei um sonho
E lembrei-me do sonho
E esqueci-me do sonho
E sonhei que procurava
Em sonho aquele sonho
E pergunto se a vida
Não é um sonho que
Procura um sonho.”

13 março 2009

Flertando com Jung




Os cursos de férias da Estácio de Sá, aqui no Rio, são sempre surpreendentes e muitas vezes agradáveis. Pessoas que abrem mão de uma praia ou algum passeio para refletir sobre A LINGUAGEM SECRETA DOS SONHOS ou INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA JUNGUIANA, disciplinas que tenho o prazer de ministrar, têm realmente alguma motivação interior muito especial.

Em janeiro de 2009, compareceu uma aluna sempre atenta e curiosa, estudante de Psicanálise e interessada em conhecer um pouco mais da Psicologia Junguiana (Analítica). Sua capacidade de apreensão e interesse logo sobressairam, além do importante aspecto de grande clareza das idéias e por apreciar o conhecimento aberto. Sim, a capacidade de questionamento e as interrogações eram por ela valorizadas, apreciando a percepção do conhecimento humano como um somatório de várias experiências pessoais, sem se fixar em dogmas ou nos limites do aprendizado.

Surpreendeu-me, após o curso, ver um artigo feito por ela, mostrando também sensibilidade e vontade de participar suas experiências no campo do conhecimento humano com outras pessoas.

Vamos logo a esse artigo que a autora teve a gentileza de liberar para publicação aqui neste blog:



FLERTANDO COM JUNG

Por Vanessa Souza, jornalista e estudante de Psicanálise Clínica.


Freud e Lacan que me perdoem. Confesso minha infidelidade. Nas últimas semanas eu andei flertando com Jung. Ainda não estou tomada de paixão, mas sinto, como Bogart em Casablanca, que esse é o começo de uma grande amizade.

Nas últimas semanas participei de uns cursinhos de férias de uma universidade carioca, 16 horas cada um. Quase um cursinho pré-vestibular sobre cada tema. O básico-do-básico-do-básico. Mesmo com toda a pressa, deu para “desconfiar” de muita coisa.


Introdução à Psicologia Junguiana foi um deles. Nem sei por quais motivos nunca havia estudado Jung. Depois da primeira aula, até descobri que tinha um pequeno volume, do tipo resumo-do-resumo, sobre as teorias dele. Logo no prefácio, o autor já avisa que Jung era o Lado B da psicanálise: confuso, bígamo e ex-discípulo de Freud.


Carl Gustav Jung nasceu em 1875, na Suíça – só para situar o leitor. Estudou medicina, tornou-se psiquiatra e em 1906 trocou a primeira carta com Freud – precursora de uma vasta correspondência. O primeiro encontro pessoal dos dois durou 13 horas. Eita cafezinho longo! A amizade não durou muito. Jung divergiu das idéias de Freud e, em 1913, Sigmund rompeu com o pupilo. Jung ficou anos deprimido por conta dessa cisão.


Uma das coisas que mais me chamou atenção na obra de Jung foram os arquétipos. Perdoem-me se eu for muito didática, mas meu conhecimento sobre o tema não me permite maiores termos-técnicos-que-mostram-que-o-autor-sabe-tudo. Arquétipo é tudo aquilo que é basilar para o ser humano, que é universal. Quando nascemos teremos todas as experiências básicas/arquetípicas que estão previstas, no mundo mental, biológico e os instintos. Os arquétipos são tijolinhos vazios, onde cada um coloca sua massa de experiências, sua tinta. O arquétipo é bipolar, tem seu lado bom e ruim. Como o arquétipo da mãe nutritiva e o da mãe devoradora – aquela que alimenta e aquela que sufoca. Quem não tem uma delas? Ou as duas, alternadamente.


Outro conceito de Jung que eu adorei é a sombra. Para Jung, a sombra é tudo aquilo que o indivíduo não queria ser. Ou seja, o que ele deseja jogar para baixo do tapete – “O complexo de sombra pode se compor tanto de conteúdos que nunca estiveram na consciência como daqueles que foram reprimidos por estarem em desacordo com a identidade construída pelo ego”.


Os tipos psicológicos, que eu já tinha ouvido tantos psicólogos falarem, só ficaram claros agora. São quatro as funções da consciência: sentimento (que confere diferentes valores às experiências), pensamento (que apreende os significados), sensação (a apreensão por meio dos sentidos) e a intuição (que capta as possibilidades futuras e o “clima” do ambiente). O pensamento e o sentimento são racionais, sensação e intuição, irracionais.


No fim das contas, resultam em oito os tipos psicológicos, pois cada uma das quatro funções da consciência podem ser extrovertidas ou introvertidas – as atitudes do eu. Resumidamente, no extrovertido a energia psíquica é voltada para o mundo dos objetos e acontecimentos exteriores, aos quais ela se liga e dos quais depende; já o introvertido é voltado para os objetos internos ou subjetivos, que determinam o comportamento.


Para concluir, o que ocorre é que uma das funções se desenvolve e serve como a principal forma de adaptação do indivíduo. Duas outras funcionam como funções auxiliares e a quarta fica pouco desenvolvida, tornando-se próxima do inconsciente. Agora eu entendo como alguém pode ser puro sentimento e ser capenga no pensamento. Ou qualquer variação sobre o tema.

10 março 2009

A Caverna (4). Lenda Carajá do Brasil.



OBS: É melhor que os artigos sobre o tema Caverna (1, 2, 3 e 4) sejam lidos nesta ordem.




É importante realçar alguns detalhes da lenda de origem dos Carajás. Inicialmente, a referência à caverna, remetendo-nos ao sentido feminino de útero gerador e também transformador, é visto desde os mitos milenares, inclusive de Platão. Trata-se da ressonância do que é universal e humano reverberando em toda parte e culturas diferenciadas, de forma a mostrar o que cada ser individual tem em comum com toda a humanidade.

O mundo das águas é considerado local de origem da vida, sendo o rio um manancial que busca a grande fonte e o seu destino: o misterioso mar. Os antigos Inan (Carajás) estavam em associação com esse mundo idílico de sonho e fantasia onde não havia sofrimento nem fome. As necessidades eram supridas naturalmente por uma proteção superior, não havia o menor trabalho. Bastava sentir fome que a comida estava logo disponível, sem necessidade de qualquer outra preocupação. No início tudo era assim: bondade e maravilha, em um estado de enorme dependência e cuidados que surgiam como bênçãos.

O barro lembra a matéria prima da vida, a argamassa a ser trabalhada, apresentando-se na forma maternal côncava de uma panela sempre disponível com a nutrição desejada. A divindade primordial cuidava de todos, mas assim o desenvolvimento individual não ocorria, o que se manifestava também no aspecto físico com a aglomeração de gorduras de forma generalizada entre os Inan.

Após algum tempo nesse estado de paralisia, era natural que surgisse certa inquietação. Há sempre um componente que percebe intuitivamente as possibilidades de mudanças. Afinal, “fora das águas” daquele mundo inconsciente parecia haver oportunidades para o novo e também acontecimentos mais subjetivos que estimulassem as escolhas individuais. Seria a possibilidade de obtenção de consciência?

Mas ninguém jamais retornara desse lugar! Parece ser assim um caminho sem volta, ou seja, certo desenvolvimento que não admite retrocesso. E curiosidade humana é assim: desperta devagar e toma conta. Só é possível contê-la na sua origem. E esse não foi o caso de Kboi ao ser contaminado pela criatividade e vontade de ser senhor do seu destino. A aventura o chamava e nada melhor do que prosseguir com um amigo cujas características completassem a si mesmo, pois se um era introvertido, o outro, U-ô-Ubedô conseguia espontânea extroversão e coragem exterior.

Esta complementaridade psicológica foi vista também no mito grego de Prometeu, que formava certa unidade com seu irmão Epimeteu. O primeiro pensava antes e agia depois, ao passo que Epimeteu partia logo para a ação (Pro + meteu = o que pensa antes, Epi = depois). Kboi pensou muito antes de agir, mas, ao chegar aonde o rio era mais fundo e a água mais escura, foi a ação do seu amigo, melhor preparado para as aventuras no mundo exterior, que se mostrou viável. Ele estava mais apto e equipado para ultrapassar a fenda que separava os dois mundos.

Sentir movimentar-se nas águas é uma situação nova e muito diferente que a estagnação sob as águas. Só assim foi possível chegar à terra firme, caminhar ereto e sentir a capacidade renovadora e refrescante do vento atingindo o corpo e a alma. A exploração desse novo cenário foi algo deslumbrante, mas os animais não surgiram nesse primeiro momento. Apenas a vegetação e a falta da panela de barro! A sensação de fome e dor, como enfrenta qualquer bebê, mostra o início do entendimento de que a situação realmente se modificara por completo e não apenas a paisagem externa.

O novo traz necessidade de adaptação e qualquer dificuldade nos leva a certa regressão da libido (energia psíquica) e para estados anteriores vividos. É o recuar para melhor saltar como possibilidade para viabilizar o futuro. A alternativa foi voltar até onde permanecia seu amigo, onde os dois vivenciaram a insegurança e a incerteza da nova situação.

Kboi tinha capacidade concreta e habilidades de movimentação no mundo interior e materno como origem da vida. Assim ele retorna ao seu núcleo central nas camadas mais profundas da sua psique para buscar inspiração e “pedir conselhos” da sua divindade Kanansiuê. Entretanto o herói percebe que o mundo físico e externo segue as suas próprias leis sem a ação direta do seu deus. Em termos psicológicos, o mundo da consciência tem a ação do eu (ego) que é o seu centro diretor para agir e fazer suas escolhas: aí os poderes “divinos” (do Si-mesmo ou Self) ficam limitados. Assim Kboi percebeu que o Grande Pai não poderia para proteger seus filhos no mundo fora do paraíso, ou seja, da consciência. Nesse mundo real e concreto cada um deveria assumir as responsabilidades por suas escolhas que fossem frutos do próprio conhecimento a ser adquirido.

Sentindo-se no caminho sem volta para a sua tomada de consciência, o jovem carajá mostrou obstinação e concentrou suas energias. Ele se fortaleceu com outros componentes da sua própria tribo, que o ajudou a encontrar seu amigo para então fundarem, no “barranco mais alto”, a primeira aldeia em terra firme.

A liberdade trouxe trabalho, riscos e necessidade de ampliação do conhecimento sobre a própria vida. Tornou-se necessário investigar o que era bom e o que era mau. Mas o deus Kanansiuê, como uma luz interior que se mantinha presente, não os abandonou, como pai verdadeiro nunca abandona seus filhos, trazendo-lhes a ajuda através do urubu-rei.

O auxílio simbólico de uma ave, mesmo que um abutre tão necessário ao equilíbrio da natureza, mostra a interferência de um ser ligado ao elemento ar. Mesmo com suas limitações, ele pareceu ser adequado para trazer capacidades de discriminação e diferenciação para a obtenção do conhecimento e garantia da possibilidade de vida. Função tipicamente do logos relacionado ao desenvolvimento do componente masculino.

Os aspectos femininos ficam mais bem demarcados na última variante da lenda apresentada. A escuridão, que predominava, estava relacionada com esse elemento, como também a própria terra a ofertar os alimentos na forma de frutos e raízes. Não havia ainda um raio de luz para clarear a consciência e trazer as possibilidades de aumentar a sabedoria no convívio com as novas situações. Como o jovem ainda não tinha o necessário discernimento, critério ou juízo de valor, alimentou-se com mandioca brava, o que comprometeu seriamente sua saúde.

O limitado aspecto masculino e rudimentar do conhecimento representado pelo urubu mostrava-se no modo de a ave se movimentar em passo desengonçado e saltitante. Entretanto, o menino já desenvolvera certas capacidades, o que ficou estabelecido na sua busca da composição com seu elemento feminino. Este surge na forma da menina com a qual se casou e a também na figura da mãe dessa jovem.

O objetivo era se livrar da escuridão que impregnava o mundo sem graça e sem vida, precisando de “enfeites” para ser ornamentado e também permitir a expansão da existência. As luzes das estrelas, da lua e do sol mostram a evolução das possibilidades de maior observação, análise, discernimento e conhecimento que podem ser proporcionadas pela consciência, cuja simbologia aponta exatamente para o sentido de luz. Onde se faz a luz é possível a formação da consciência.

Assim o ser humano, na medida das suas condições internas e externas, pode nascer e morrer, cumprindo a meta primordial da vida: a ampliação da consciência.


Ref.
ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil, histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, sem data.

04 março 2009

A Caverna (3). Lenda Carajá do Brasil, outra versão.


Obs: É melhor que os artigos A Caverna 1, 2, 3 e 4 sejam lidos na sequência.


Há outras versões da lenda sobre a origem dos antigos índios carajás. Essas estórias diferentes apenas fortalecem o conteúdo simbólico de todo o conjunto. Vale a pena apreciar e verificar como podem se complementar ou mesmo amplificar o conteúdo.

Esses povos indígenas vieram do Furo das Pedras, originando-se de um local debaixo d’água. Nesse mundo subterrâneo, a luz penetrava enquanto na superfície era noite. Eram então muito felizes e morriam de velhice só mesmo depois de terem cansado de viver. Certo dia um grupo resolveu sair de lá e passaram a habitar a terra. Entretanto um deles, por ser muito robusto, não conseguiu passar pelo furo da pedra, ficando ali entalado. Os que subiram trouxeram-lhe frutos, comidas e galhos secos de árvores. Ele se surpreendeu e alertou: “Vejam esses galhos secos das árvores, lá as coisas morrem! Não quero mais prosseguir. Voltem para nosso lugar onde viveremos para sempre.” Mas ninguém o ouviu e ele voltou para o fundo do buraco.

Os carajás que passaram pelo buraco tiveram que se acostumar com os períodos de escuridão e se alimentavam com raízes e frutos do mato que precisavam ir catar.

Em certa ocasião, um menino chegou, viu uma menina, achou-a bonita e com ela se casou... Depois ele mandou que ela fosse buscar frutos (ao mato), mas estava tudo escuro. A mãe da menina se aproximou, desejando ajudar, mas como estava escuro para colher frutos, machucou a mão nos espinhos. Nada podiam fazer por conta da penumbra, de modo que teriam de esperar que aparecesse pelo menos um raio de sol para clarear.

Aí a mãe resolveu mandar o menino buscar raízes. Com a escuridão, ele pegou a primeira raiz de mandioca que conseguiu achar e comeu. Mas era mandioca brava, o que o levou a passar mal, ficando deitado de costas.

Logo chegou um urubu, vindo com o seu passo desengonçado, dizendo para os outros: - “Ele não está morto, ainda se move.” O menino continuava deitado de costas, com os olhos piscando. Chegaram mais urubus voando ou saltitando pelo chão para beliscar e bicar o garoto.

Enquanto isso, um caracará muito cuidadoso ficou voando em redor, observando. Chegou mais perto do menino e gritou para os urubus: - “Cuidado, ele está vivo!” Os urubus em coro responderam: - “Ele está morto!” E a discussão virou a maior confusão: - “Ele está morto! Ele está vivo!” Para acabar com aquela bagunça, o carcará foi buscar o urubu-rei, que atestou estar vivo o menino.

O caracará resolveu buscar o avô do urubu-rei, de bico vermelho e o cabelo ralo, que chegou e disse: - “Ele está morto!” E rapidamente pousou sobre a barriga do menino. Então ouviu-se um estalo... O menino pegou o urubu-rei com as mãos. Ele se debateu, esperneou, quis fugir, mas estava seguro. Então o menino disse ao urubu-rei: - “Quero enfeites!” E o urubu-rei respondeu: - “Vou trazer!” E trouxe as estrelas do céu. O menino não gostou porque continuava escuro: - “Quero outro enfeite!” O urubu trouxe a lua. E o menino respondeu: - “Também não serve, ainda está escuro!” Então o urubu-rei trouxe o sol. E o menino ficou contente porque tudo ficou claro. Era o dia.
A mãe se aproximou do urubu-rei, que passou a ensinar-lhe a utilidade de todas as coisas. Então o menino soltou o urubu-rei. Nisso a mãe lembrou-se de perguntar qual era o segredo da eterna juventude. O urubu respondeu, mas infelizmente ele estava tão alto que muitos ouviram a resposta: as árvores, os peixes, os animais. Infelizmente, pela altura em que ele voava, a mãe e o menino não conseguiram ouvir o que o urubu disse naquele momento.
É por isso que envelhecemos e morremos.

Assim se encerra a lenda. Certamente muitas crianças atuais gostariam de ouvir estórias assim: por que não contar para elas? E os adultos são levados à profunda reflexão sobre o sentido de todas essas coisas.

Estas são aventuras e acontecimentos fantásticos transmitidos pela tradição carajá. Podemos perceber a estrutura básica dos mitos consagrados desde a antiguidade, tratando-se, como eles, de narrativas cosmogônicas (origem da ordem e do mundo) ou de ampliação da consciência. Esses são os aspectos basilares dos mitos, mostrando a formação do cosmos, que equivale na Psicologia Junguiana à formação da consciência.

A noção geral de caos remete à noção de confusão geral dos elementos antes da formação do mundo, onde imperava certa desordem. É dessa indiferenciação inicial que lentamente se estabelece certa ordem, arranjo e estruturação. As coisas e seres parecem ter melhor definidos os seus lugares, podendo estabelecer sua existência individual. Os seres humanos passam a ter noção da sua consciência individual e coletiva, ainda que nos primeiros e primitivos estágios tudo ainda fosse percebido com certo grau de confusão e indiferenciação.

Olhando para os dias atuais, antes de o bebê desenvolver os primeiros sinais da sua percepção ou da sua consciência, há de se observar que o mundo já estava ali com todos os atores e cenários próximos: mãe, pai, avós, tios, casa, aparelho de tv, videogame e tudo o mais. A formação da consciência é um ato criador do mundo no sentido de visão e experienciação com esse mundo. Passará toda a existência e certamente o novo ser não conseguirá tomar conhecimento de todos os detalhes e potencialidades do mundo em que vive.

Os passos da sua evolução são muito lentos, meses se transcorrem até o bebê estabelecer a sua incipiente noção de identidade. No início, é tudo muito misturado e indiferenciado, pois ele próprio, a mãe e o mundo se confundem, estando amalgamados e anelados. É como se o mundo fosse sendo criado progressivamente. Assim, cada início ou ampliação da consciência corresponde a um ato de criação do mundo que assim vai sendo descoberto.

A formação da consciência individual caminha na mesma proporção da consciência coletiva de uma sociedade, povo ou nação. Afinal o que o grupo conhece do mundo é o que pode ser passado para os bebês das novas gerações. Cada ser humano que nasce traz suas capacidades humanas, tanto corporais como psíquicas. Cabe desenvolvê-las no seu meio e nas relações pessoais e culturais, pois sem essa troca qualquer processo de desenvolvimento permanecerá estagnado em algum ponto.

(continua)


Ref.
ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil, histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, sem data.