28 fevereiro 2009

A Caverna (2). Lenda Carajá do Brasil.


OBS: É melhor que os artigos sobre "A Caverna" sejam lidos na sequência 1, 2, 3 e 4.


A continuação do artigo anterior diz respeito à universalidade do tema “caverna”, mostrando que além do mito de Platão temos em povos nativos no Brasil similaridades e potencialidades no interior e no exterior da caverna mitológica. É a forte ligação humana do inconsciente coletivo. Vamos então fazer essas conexões com um exemplo muito prático e brasileiro:

Contam histórias muito antigas e estranhas dos povos indígenas Carajás, que habitaram há muito, muito tempo mesmo, a região da ilha do Bananal (a maior ilha fluvial do mundo). O rio Araguaia se duplica para contornar essa magnífica ilha situada entre os estados de Goiás e Mato Grosso do Norte.

Os índios Carajás moravam no fundo desse rio, que em língua tupi significa rio das araras. Só Kanansiuê, o seu deus, seria capaz de explicar como eles passaram a morar no fundo desse rio misterioso. Nessa aldeia todos viviam com muita paz, nada faltava ou incomodava. Mesmo a alimentação não dava qualquer trabalho, pois quando a fome começava a chegar havia uma panela de barro para cada um, sempre cheia de comida. A panela se enchia novamente sempre que alguém a esvaziava. Não dava o menor trabalho, era uma dádiva da ação e bondade infinitas de Kanansiuê.

Com esse abençoado e protegido tipo de vida, eram todos muito gordos, principalmente as mulheres. Não havia sofrimento, doenças ou dor de qualquer espécie. Assim, no fundo do rio, ninguém morria: era somente nascer, crescer, engordar, e reproduzir-se à vontade. O invisível pai Kanansiuê estava sempre presente cuidando de todos os Inan, como eles se chamavam entre si.

A vida na aldeia começou a ficar sem graça e monótona, apesar de ninguém ter motivo para ficar insatisfeito. Os mais jovens ficavam a maior parte do tempo sentados em volta de um índio mais velho, que contava as estórias da tribo; em todas elas, Kanansiuê era exaltado pelos seus feitos benevolentes.

Apesar de nada faltar para viver tranquilamente, um dia o índio chamado Kboi começou a mostrar sinais de inquietação. Ele tinha ouvido falar que fora das águas, além das margens do grande rio das araras, havia outras formas de vida, um mundo completamente diferente daquele que todos conheciam. Assim ele soube a respeito de animais estranhos e de uma vegetação abundante com a qual os Inan não estavam acostumados ali embaixo do rio.

A curiosidade de Kboi foi aumentando de mansinho, despertando o desejo de conhecer esse mundo novo e imaginário. As descrições fabulosas a respeito dessa estranha realidade eram encantadoras, mas ninguém retornara desse lugar. Mesmo assim ele foi ficando cada vez mais inquieto e curioso, chegando a chamar a atenção dos mais velhos que tentaram persuadi-lo contra qualquer aventura. As coisas são como são, disse-lhe uma vez um índio mais velho. Para que sair ou ir embora? Ele não tinha tudo o que precisava no fundo do rio? Kanansiuê não era amigo de todos? Para que se preocupar com o tempo se ele não tinha qualquer utilidade?

Nem mesmo Kboi sabia responder a essas perguntas, mas sentia crescer a sua curiosidade com uma força irresistível. Ele procurou o amigo chamado U-ô-Ubedô, dividindo suas inquietações, certo mal estar, além de ousados planos para praticarem uma aventura. O amigo relutou um pouco, mas terminou concordando em acompanhá-lo. “E se nós dois morrermos?” Perguntou-lhe, tendo como resposta: “Eu não sei... Você não está cansado desta vida de nunca morrer... de nunca acontecer nada?”

Os dois amigos decidiram procurar a saída que dava acesso à superfície do rio. Tinham ouvido falar de um buraco para chegar à tona, o ruê Bêérokan, que conseguiram encontrar depois de prolongada busca e cansativa caminhada. Perceberam que o orifício estava localizado justamente no local onde o rio era mais fundo e a água mais escura.

Dizem que, ao amanhecer, chegaram nesta pequena passagem e Kboi foi o primeiro a subir, tentando atingir o novo mundo. Ele pôs a cabeça para fora, olhou em redor, viu as margens, as grandes árvores de copas frondosas, mas algumas estavam caídas. Procurou em vão sinais de vida, não aparecendo qualquer dos fantásticos animais de que lhe falaram. O que estaria acontecendo? Seriam verdadeiros os relatos que ouvira? Ou seria Kanansiuê que afastou os animais para desanimar os amigos?

Kboi ficou intrigado com aquela situação. Tentou sair de uma vez para a superfície, mas era muito gordo e a sua barriga não permitiu, mesmo forçando o corpo na passagem. Ficou entalado: meio do lado de fora e metade para dentro, tendo que ser ajudado por U-ô-Ubedô para retornar. Seu amigo, um pouquinho menos gordo, experimentou a passagem, ajeitou-se e conseguiu. De pronto, viu-se nadando sobre as águas, o que era para ele uma sensação absolutamente nova e inusitada. Entusiasmado com o sucesso, dirigiu-se para uma das margens, pisou em terra firme e viu-se caminhando sobre os próprios pés com o ar batendo no corpo.

O jovem índio Inan (como os Carajás se chamavam) ficou deslumbrado com o que via. Como Kboi, não encontrou qualquer vestígio de animais diferentes. Depois de andar por algum tempo, sentiu fome e percebeu a panela de comida bem ao seu lado. Alimentou-se fartamente, como de hábito, e prosseguiu explorando aquele mundo novo e enigmático. Tudo atraia sua atenção, cada árvore, arbusto e toda a vegetação. Mais tarde, ele sentiu fome novamente, mas para sua surpresa a panela de barro não estava lá. A princípio não deu maior importância ao fato, mas a fome foi aumentando. Ele achou muito estranha aquela nova sensação com o estômago vazio, pois era algo que para ele poderia ser dor. Resolveu voltar.

Kboi o aguardava ansioso para ouvir os detalhes da sua exploração. O amigo então contou tudo o que viu, mas estava fortemente impressionado com a ausência da panela de comida. Pediu ao amigo que lhe trouxesse algo para comer, pois aquela sensação estava se tornando insuportável; ele não sabia que era assim tão ruim.

U-ô-Ubedô tentou voltar pelo buraco, mas para sua surpresa não conseguiu o seu intento. Isso era estranho e preocupante, pois a abertura permanecia a mesma. Não dava para entender por que a passagem só poderia ser feita de dentro para fora, sem conseguir retornar para dentro. Os dois ficaram atordoados e começaram a acreditar nas estórias dos mais velhos: não haveria volta para quem fosse à superfície.

Sem saber o que fazer, Kaboi, que ficara do lado de dentro, decidiu voltar à aldeia no fundo do rio para pedir conselhos aos anciãos. Rogou-lhes que intercedessem junto a Kanansiuê. Eles o fizeram a contragosto. O deus, já irritado, concordou em deixá-los partir, alertando que fora das águas os seus próprios poderes eram muito limitados.

Kboi era mesmo um obstinado, estava decidido a correr todos os riscos. E começou a fazer um rigoroso regime de emagrecimento enquanto tentava influenciar outros índios a arriscarem a vida do lado de fora das águas. Conseguiu convencer um grupo que o seguiu ao encontro do amigo que já estava impaciente do lado de fora. Atingiram a superfície e nadaram até a margem do rio, caminhando até encontrar um barranco mais alto. Escolheram essa posição para formar a primeira aldeia em terra firme.

Entretanto a vida era muito difícil, logo eles tiveram que aprender a pescar e a caçar, precisavam saber quais as plantas serviam para a sua alimentação e quais eram venenosas. Não tinham noção de como construir uma cabana, ficando, durante muito tempo, sofrendo expostos às intempéries. Eles não conseguiam adivinhar o que era bom e o que era mau. No fundo do rio, era tudo igual, ninguém precisava saber dessas coisas. Logo alguns índios começaram a adoecer e a morrer. Quando o desespero chegou a um ponto crítico, Kanansiuê apareceu-lhes na forma de um índio alto e forte, dizendo: “ – Permiti que vocês saíssem por causa do desejo de vocês e nem mesmo um deus deverá matar nos homens os seus anseios de liberdade. Mas isso me doeu muito, pois lá, no fundo das águas, eu lhes dava tudo e vocês recusaram as minhas dádivas”.

Mesmo magoado, Kanansiuê decidiu ajudá-los, saindo em busca do urubu-rei, conseguindo atraí-lo e aprisioná-lo, obrigando-o a passar um dia na terra, entre os Inan, ensinando-lhes tudo o que precisassem para conseguir sobreviver fora das águas.


Ref.
PERET, João Américo. Mitos e Lendas Karajá. Rio de Janeiro: Peret, 1979.


24 fevereiro 2009

A Caverna (1). Platão.




Obs: 1) O último artigo (Nise da Silveira) sofreu pequenas correções e já está no blog.

2) Agora teremos uma sequência de 4 artigos sobre o tema da caverna. O próximo não deverá ser enviado por email, ficando disponível no blog. Bom proveito!


Vamos ao primeiro deles:


Esse tema é realmente marcante para muitos povos e culturas. Em nosso país, percebemos nas diversas regiões como as pessoas ficam tocadas e sensibilizadas ao apreciar a magia que reina no interior de uma caverna, despertando a liberação plena da imaginação e da fantasia.

No interior de Minas, a religiosidade faz as estreitas ligações com o assunto, despertando as questões mais íntimas. Muito além do turismo, as pessoas locais ligam-se com muita energia às reminiscências trazidas pela Gruta de Maquiné (Cordisburgo-MG) e na Casa de Pedra em São João del Rei (MG) , por exemplo. As ligações e associações são profundas, começando pelo nascimento de Jesus numa gruta, assim como também foi em local parecido que seu corpo permaneceu, após o calvário, até a Ressurreição. Pelo seu formato, lembram também as capelinhas, os oratórios e santuários – símbolos próprios para certa reflexão e contato interior.

As comemorações natalinas são marcantes no interior do país. Em Minas, os filhos são estimulados pelos pais a participar da montagem dos presépios onde a gruta aparece de forma predominante, enfeitada acima com malacacheta ou mica (grupo de minerais que se separam facilmente em folhas muito finas), musgos, pedras e outros produtos encontrados na natureza. Após a montagem final, todos ficam admirados e agradecidos por verem aqueles componentes básicos formarem um conjunto tão harmonioso e sagrado, estimulando a espiritualidade e a fé.

Em muitas culturas a caverna aparece como local apropriado para o nascimento e o renascimento, considerado como receptáculo de energia telúrica (associada à Terra). Por estar normalmente incrustada em elevação ou área montanhosa, esse conjunto desperta a associação com o local propício aos deuses em muitos povos. Muitas nações indígenas consideram as montanhas como local sagrado que nem mesmo deve ser freqüentado. Como exemplo no Brasil, os ianomâmis estimulavam a ida de garimpeiros nas altitudes do Pico da Neblina, pois eles mesmos não freqüentavam essa área montanhosa. Na Grécia antiga, a organização divina feita por Zeus tinha como base o monte Olimpo.

A caverna também está relacionada ao sentido de chegada e de partida, entrada e saída da vida, lembrando a importância do útero materno e do acolhimento necessário para as transformações. A Grande Mãe participa com seu princípio gerador e nutridor, propiciando também os incentivos para o crescimento; desse princípio sai a vida que também a ele retorna após cumprir a sua jornada.

O apelo torna-se cada vez mais potente à medida que avançamos nos esclarecimentos, de forma a mostrar a sua importância universal. Como um retorno à origem, a caverna também é um local de regeneração. Entrar nesse ambiente pode significar uma volta ao início, podendo então “subir ao céu”, ultrapassar o cosmo da própria consciência. A caverna se apresenta como um local de passagem tanto da terra para o céu como o caminho inverso (no sonho bíblico de Jacó anjos subiam e desciam pela escada que ligava ao céu).

No interior da caverna existem os perigos do desconhecido, pois é uma região sombria e subterrânea de limites invisíveis, lembrando um temível abismo de onde podem surgir os monstros. Aqui encontramos os dois aspectos – positivo e negativo – de todo grande símbolo, e o paralelo inevitável do mundo do inconsciente, de onde viemos (eu – ego) e para onde retornaremos. Essa volta já é sinalizada em cada noite quando, ao dormir, fazemos esta passagem transitória pelo mundo do inconsciente.

Há lendas a respeito de cavernas entre muitos povos indígenas. Em regiões do Oriente este tema é também reincidente. Na Grécia ele ganha um realce especial, já nos lembrando Chevalier (*) que: “Toda a tradição grega une estreitamente o simbolismo metafísico e o simbolismo moral: a construção de um eu harmonioso faz-se à imagem de um cosmo harmonioso. A organização do eu interior e sua relação com o mundo exterior é concomitante.” Os gregos desenvolviam uma impressionante noção de conjunto e de totalidade, uma visão do organismo pessoal, social e espiritual. Tudo muito aproximado e participante da plena vida.

O filósofo Platão (A República, livro VII) que, há quase 2.500 anos, nos brinda com o seu famoso Mito da Caverna. A narrativa mostra que homens estão, desde a sua infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço de modo a não poderem movimentar nem mesmo a cabeça, permanecendo de costas para a entrada da caverna. Estão assim imobilizados e com o campo visual limitado, somente percebendo as sombras nas paredes internas projetadas pela luz de uma fogueira que arde atrás deles.

A caverna é assim a imagem do mundo, mostrando a situação extremamente limitada do homem na Terra. “A luz indireta que ilumina suas paredes provém de um sol invisível; mas indica o caminho que a alma deve seguir a fim de encontrar o bem e a verdade: a subida para o alto e a contemplação daquilo que existe no alto representam o caminho da alma para elevar-se em direção ao lugar inteligível. Em Platão, o simbolismo da caverna implica portanto uma significação não apenas cósmica, mas também ética e moral. A caverna e seus espetáculos de sombras ou de fantoches representam esse mundo de aparências agitadas, do qual a alma deve sair para contemplar o verdadeiro mundo das realidades – o mundo das idéias”.
Os prisioneiros percebiam como sua única realidade as sombras projetadas nas paredes: deles próprios, dos outros homens acorrentados e também daqueles que, nas suas costas, mantinham a fogueira acesa. Com estes eles não tinham contato visual direto, e nem podiam imaginar que o Sol lá fora inundava a Terra com sua estonteante luminosidade. Um dos prisioneiros decide abandonar essa condição e fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões. Aos poucos vai se movendo e avança na direção de um muro e o escala; com dificuldade enfrenta os obstáculos que encontra e sai da caverna. Em liberdade, descobre não apenas que as sombras eram feitas por homens como ele, mas também que provinham de todo o mundo de natureza até então desconhecida. Encanta-se com coisas nunca vistas e com o esplendor do Sol. A adaptação nesse outro mundo precisa ser gradual, pois a luminosidade e as possibilidades de ampliação do conhecimento são impressionantes. Nesse contexto, surge a indagação crucial: e se este homem retornasse para contar aos seus companheiros tudo o que descobrira, como seria interpretado? Um mentiroso ou alguém dominado pela fantasia?

Provavelmente Platão se referia indiretamente aos seus contemporâneos com suas crenças e superstições. Ele fugia das amarras comuns que prendem o homem e partia para uma compreensão mais ampla do mundo. Segundo a metáfora, “o processo para a obtenção da consciência abrange dois domínios: o domínio das coisas sensíveis (eikasia e pístis) e o domínio das idéias (diánoia e nóesis). Para o filósofo, a realidade está no mundo das idéias e a maioria da humanidade vive na condição da ignorância, no mundo ilusório das coisas sensíveis, no grau da apreensão de imagens (eikasia), as quais são imutáveis, não são funcionais e, por isso, não são objetos de conhecimento”.

Mesmo o empirista mais dedicado sabe que não pode perceber, apreender ou compreender a totalidade dos fatos e do mundo concreto. Para conhecer melhor a realidade certamente é preciso percebermos melhor os objetos e o cenário do mundo exterior. Mas, nessa compreensão, terão enorme influência o modo como funcionamos no nosso interior, ou seja, como estamos captando esses sinais e imagens, pois estarão influenciando nessa apercepção nossos pensamentos, fantasias, inclinações, imagens, intuições e inspirações.

Ter a noção das limitação pessoais certamente é um início da longa caminhada no “processo de individuação” e crescimento pessoal. O forte simbolismo da caverna mostra as possibilidades de uma constante gestação de seres com maior ampliação da sua própria consciência. Parece ser essa a meta da vida, como podemos perceber nas diferentes culturas.


Ref.
* CHEVALIER, Jean e Gheerbrant A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

19 fevereiro 2009

Nise da Silveira - Lidar com o diferente


OBS: O último artigo (Tempo 2) não foi enviado por email e está disponível aqui no blog. É importante ler na ordem correta e comparar as imagens do relógio simbolizando o tempo. Como cada um de nós está percebendo o relógio de nossas vidas? Podemos dizer que vários amigos que "correm contra o tempo" nos motivaram, mesmo sem saber, a escrever esses artigos. As notícias são sempre atualizadas no blog.

Vamos ao artigo de hoje:

"Felizmente, eu nunca convivi com gente muito ajuizada." (Nise)

A menina Nise nasceu em Maceió, Alagoas, em 15 de fevereiro de 1906, formando-se médica na Faculdade de Medicina da Bahia em 1926. Nise foi a única mulher entre os 156 homens de sua turma, destacando-se como uma das primeiras mulheres no Brasil a se formar em Medicina. Casou-se com o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira, colega de turma na faculdade, com quem conviveu até 1986, quando ele faleceu. Tendo se especializado em Psiquiatria, apontou as relações entre pobreza, desigualdade social, escassez da promoção de saúde e falta da prevenção da doença como as principais causas das patologias psiquiátricas no Brasil. Aprovada num concurso público, em 1933, começou a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha. Durante a Intentona Comunista foi presa e afastada do Serviço Público de 1936 a 1944.

Após ser anistiada, criou, em 1946, a Seção de Terapêutica Ocupacional no Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, posteriormente conhecido como Centro Psiquiátrico Pedro II. Neste momento, começou sua luta contra os agressivos métodos terapêuticos aplicados aos internos psiquiátricos, recusando-se a aplicar eletrochoques, insulinaterapia e lobotomia. A diretoria da instituição a transferiu para o setor de terapia ocupacional como meio de punição. Até aquela data, as terapias ocupacionais aplicadas eram faxina e limpeza dos aposentos hospitalares. Nise da Silveira se recusou a tratar internos desta forma e implantou ateliês de pintura e modelagem para que os pacientes pudessem expressar sua realidade simbólica pela arte e criatividade.

Nise assim definia o que esperava com as novas atividades dos internos: “O atelier de pintura me fez compreender que a principal função das atividades na terapêutica ocupacional seria criar oportunidades para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores encontrassem formas de expressão.”

Em 1949, participou com o trabalho de nove internos na exposição do MAM de São Paulo, intitulada ‘Nove artistas do Engenho de Dentro’. No ano seguinte contribuiu com inúmeras obras dos internos no I Congresso de Psiquiatria em Paris. Segundo Nise as criações artísticas eram expressões espontâneas dos pacientes: “Eu os via pintar. Via suas faces crispadas, via o ímpeto que movia suas mãos. A impressão que eu tinha era estarem eles vivenciando estados do ser inumeráveis e cada vez mais perigosos.”

Leitora e admiradora dos livros de Carl Jung e da Psicologia Analítica, Nise dedicou-se a lutar pela implantação de novos tratamentos para os doentes psiquiátricos que buscassem um maior e mais eficiente diálogo através da arte. Mais do que apenas buscar a terapia ocupacional, ela ansiava pela ‘emoção de lidar’, expressão usada por um de seus pacientes. Assim, em 1952, a partir do seu trabalho, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, um centro de estudo e de pesquisa reunindo obras produzidas nos ateliês de pintura e modelagem da instituição Psiquiátrica Pedro II.

No início da década de 50, Nise criou a Casa das Palmeiras, instituição que visava a ser uma ponte entre o Hospital psiquiátrico e a sociedade civil. Era a semente do que hoje conhecemos como Hospital Dia (implantado após grande movimento internacional da anti-psiquiatria já no final do século XX). Na Casa das Palmeiras, durante as tardes, os pacientes participavam de terapia ocupacional constituída de várias atividades. Os doentes que possuíam acompanhamento externo continuavam a medicação e os que não tinham eram medicados por psiquiatras voluntários que lá trabalhavam. A Casa das Palmeiras foi um dos símbolos do movimento da psiquiatria social no Brasil e em nada fica devendo ao movimento anti-psiquiatria do pós-guerra na Europa e Estados Unidos.

Em 1954, constatando a repetição de círculos nas pinturas de esquizofrênicos, ela escreveu ao eminente psiquiatra de Zurique, Carl Gustav Jung, relatando o fato. Sua carta foi prontamente respondida e recebeu o convite para apresentar os trabalhos dos doentes no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique (1957). A exposição A Arte e a Esquizofrenia contou com a presença, aprovação e aplauso de Jung, estudioso psiquiatra que dedicou sua vida defendendo a linguagem simbólica do inconsciente coletivo.

Da manifestação criativa e espontânea de seus pacientes, Nise da Silveira pôde continuar buscando uma maneira de comunicar-se com os esquizofrênicos. Segundo ela: “A palavra sânscrita mandala significa círculo, no sentido ordinário dessa palavra. Na esfera das práticas religiosas e em psicologia refere-se a imagens circulares que são desenhadas, pintadas, modeladas e dançadas. Como fenômeno psicológico aparece espontaneamente em sonhos, em certas situações de conflito e em casos de esquizofrenia. Freqüentemente contém uma quaternidade, ou múltiplo de quatro sob a forma de cruz, estrela, quadrado ou octógono etc. Sua ocorrência espontânea na produção de indivíduos contemporâneos permite à pesquisa psicológica fazer investigações sobre sua significação funcional. Em regra, a mandala ocorre em situações de dissociação ou desorientação psíquica. Esquizo, no grego quer dizer separado, partido, mas volta e meia apareciam círculos nos desenhos. Então, como sou atrevida, escrevi para Jung, perguntando se eram mandalas os círculos que os doentes pintavam. Levei um grande susto de felicidade quando recebi uma carta da secretária de Jung dizendo que o professor agradecia muito as mandalas. A partir daí comecei a trabalhar com os conceitos de Jung”.

A partir dos contatos em Zurique com Carl Jung e Marie Louise Von-Franz, Nise introduziu e divulgou a psicologia junguiana no Brasil através de seus conceitos e inovadoras maneiras de tratamento do doente psiquiátrico. Ela iniciou o Grupo de Estudos C. G. Jung com o objetivo de estudar, propagar e utilizar os conceitos da Psicologia Analítica. O grupo promoveu seminários, publicação da revista ‘Quatérnio’ e pesquisas na área que deram origem a exposições, documentários, simpósios, publicações, conferências e cursos sobre terapêutica ocupacional, com destaque para a importância das imagens.

Nise foi ainda pioneira na pesquisa das relações afetivas entre pacientes e animais, aos quais chamava de co-terapeutas. Percebeu que seus pacientes, ao cuidarem de um animal abandonado, criavam laços afetivos estáveis que auxiliavam na reabilitação. Ela escreveu sobre esse processo em seu livro "Gatos A Emoção de Lidar", publicado em 1998. Em todos os seus campos de atuação (Casa das Palmeira, Museu do Inconsciete, Grupos de Estudos) a presença dos co-terapeutas era certa. Os cães e gatos ajudavam na terapia e no ambiente de trabalho de maneira a fornecer o equilíbrio de forças e tendências inconscientes. A relação entre pessoas e animais é essencialmente não verbal, e era por esta via que ela procurava captar as dificuldades de seus pacientes e mobilizar a partir daí as primeiras manifestações de cura.

Nise da Silveira continuou buscando a metalinguagem (além da linguagem) utilizada pelos esquizofrênicos em suas pinturas, opondo-se aos psicanalistas que afirmavam não haver transferência na esquizofrenia. Isso porque, segundo eles, o embotamento e distanciamento afetivo do doente não permitiam tal ligação. Nise não concordava com essa argumentação e insistia que o esquizofrênico busca uma maneira de criar uma ponte afetiva com o mundo através de suas pinturas e na relação com os animais. Para ela, a Psiquiatria deveria se familiarizar com a metalinguagem do esquizofrênico a fim de entender o significado dos seus símbolos.

A teoria de Nise da Silveira sobre a terapia ocupacional era centrada na idéia de que se tratava de uma psicoterapia não verbal, podendo ser expressa com uma linguagem mais arcaica, universal e coletiva. A base teórica de sua argumentação era a Psicologia Analítica de Carl Jung. Nesse sentido, dizia Nise: “É, sobretudo, na psicologia junguiana que se pode encontrar base sólida para a compreensão da terapêutica ocupacional como psicoterapia de nível não verbal. A psique é na sua origem, diz Jung, uma função do sistema nervoso difundida em todo o corpo e cujo centro, filogeneticamente, não se achava na cabeça, porém no ventre, nas suas massas ganglionares. O plexo solar, no conceito de Jung, seria a primeira localização psíquica [...] se o plexo solar e o plexo cardíaco são centros psíquicos rudimentares, poder-se-á admitir que no curso da primeira infância traços mnêmicos de forte carga afetiva aí se acumulem. Será difícil, através do instrumento verbal, mobilizar esses afetos tão profundamente depositados e traze-los à consciência. O mais simples e o mais eficaz será o declive que a espécie humana sulcou durante milênios para exprimi-los: a dança, as representações mímicas, a pintura, a escultura, a música. O contato, a comunicação com o psicótico terá um mínimo de probabilidade de efetivar-se se pretendermos iniciá-las no nível verbal das nossas habituais relações entre pessoas. Isso só ocorrerá quando o processo de cura já se achar bastante adiantado. O médico que deseje comunicar-se e compreender o seu doente terá de partir do nível não verbal. É aí que se insere a ocupação terapêutica.”

Nise da Silveira faleceu em 30 de outubro de 1999, na cidade do Rio de Janeiro, depois de praticamente um século dedicado a seus pacientes e seguidores. Para a médica, pensadora e realizadora, “sob o impacto de afetos intensos, o inconsciente se reativa em proporções extraordinárias ameaçando submergir o ego consciente. Mas tão grande regressão ameaçando a preservação da vida provoca impulsos compensatórios que partem do próprio inconsciente, impulsos que impelem a titubeante consciência para a luz. O inconsciente é o ventre escuro que aconchega, mas também todo ventre tende a parir. A consciência nasce do inconsciente."

Em reconhecimento por seu importante trabalho, Nise da Silveira recebeu condecorações, títulos e prêmios em diferentes áreas do conhecimento: saúde, educação, arte e literatura. Foi membro fundador da Sociedade Internacional de Psicopatologia da Expressão, com sede em Paris. Seu trabalho e principalmente o exemplo de seus princípios inspiraram a criação de Museus, Centros Culturais e Instituições Psiquiátricas no Brasil e no exterior. O brilhante poeta Carlos Drummond de Andrade destaca: "Sem pretensão de formar criadores no sentido que lhes atribui a disciplina estética. Sem querer aumentar o catálogo de nossos pintores, escultores, gravadores. Nise interroga o inconsciente e consegue que dele aflorem as representações artísticas espontâneas, prova de que nem tudo em seus autores é caos ou aniquilamento. Perduram condições geradoras de uma atividade bela, a serem devidamente estudadas visando ao benefício do homem futuro, tornando-o mais transparente em suas grutas interiores.”

Site recomendado: http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/






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14 fevereiro 2009

O Fator Tempo (2)



Depois de um passeio pela importância do tempo englobando vários segmentos da vida das pessoas, atingindo o reinado de importância em trabalho, família, lazer, artes e amizade – nada mais prazeroso e refrescante do que verificar o assunto também com o auxílio da mitologia.

O poema babilônio Enuma Elisch é um importante documentário sobre a origem do mundo, tal como entendia a antiga população dessa cidade situada na Mesopotâmia, atual Iraque, podendo expressar as idéias dos antigos sumeros. A cidade foi fundada por volta de 2350 a.C. (a guerra de Tróia, marco mítico importante no mundo grego, somente ocorreu em 1200 a.C aproximadamente.).

Segundo a narrativa, nas origens da vida existia um caos aquoso de duas entidades – uma masculina e outra feminina. Era o velho Apsu como um oceano primordial e Tiamat, a personificação do mar. Ela simbolizava o caos primário, ou o profundo e deu à luz os primeiros deuses cósmicos: Espaço, Tempo, Céu e Terra. Estes deuses começam a mover-se por conta própria, passam a cantar e a fazer barulho. Essa movimentação e ruído perturbam o adormecido Apsu o que leva Tiamat a resolver matar os deuses que perturbavam seu marido.

Ocorre que os deuses resolveram se defender. Marduck, o magnífico filho de Ea (deus da Sabedoria), é escolhido como líder para enfrentar as forças hostis. Tiamat deu à luz um exército inteiro de monstros chefiados por Kingu, que ela escolhe como seu marido.

Marduck solta os quatro ventos contra Tiamat, cercando-a por todos os lados. Assim ela é capturada com uma rede. Marduck usa uma espada e a desmembra, resultando desse corpo despedaçado as partes da Terra, isto é, as montanhas, os rios, etc. Mas Tiamat é imortal por ser uma deusa e os monstros do caos escapam da punição. Apenas Kingu é morto e, com seu sangue, Marduck cria a raça humana.

A partir desse ponto, o homem tem que sofrer a tensão entre caos e cosmos e a culpa resultante de seu conflito para que os deuses possam ficar em paz. E ainda se fez necessário que o homem presenteasse os deuses com oferendas de incenso e comida para sustentá-los.

Assim se encerra o conto que nos mostra a percepção da importância, desde aquela época, da formação da consciência para o homem. Como criatura deficiente, sua sobrevivência na natureza se deveu a essa capacidade, pois o mesmo não possuía armas naturais de proteção, como ocorre com os animais. Percebe-se, assim, que essa formação surge com o símbolo do herói Marduck e que os deuses cósmicos são imprescindíveis na formação e na tomada de consciência do homem, mais precisamente nos componentes Espaço, Tempo, Céu e Terra.

Estes dois últimos simbolizam internamente a capacidade ou componente feminino e masculino (Yin, Yang), eros e logos, relação e discriminação, ligação e separação, sol e lua, dia e noite, análise e holismo, pensamento e sentimento. Em termos de manifestação exterior, remete ao instinto de sobrevivência da espécie, a atividade sexual com a separação macho-fêmea. Esta questão mostra a problemática do convívio íntimo entre as pessoas, fonte de muitos problemas e histeria na época do puritanismo vitoriano, mas hoje com os valores melhor definidos, mesmo que apenas mais satisfatoriamente resolvidos. Mas certamente há mais liberdade e honestidade de propósitos.

A questão interior, a conjunção entre o consciente culturalmente masculino e o inconsciente feminino é sem dúvida de enorme importância, participando da definição sobre a qualidade de vida mental e espiritual de cada pessoa.

Estes fatores e o Espaço serão alvos de maior aprofundamento em outras oportunidades, pois a questão do Tempo torna-se aqui mais adequada e oportuna.

“A inteligência humana não faz outra coisa senão repartir a realidade em pedaços cada vez menores (análise) e escolher entre eles (possibilidade de decisão)”. (*2, p. 21). Ao fazer uma opção, a pessoa descarta outras oportunidades. Se isso for realizado incondicionalmente, abre-se o caminho para a polaridade, ou seja, a percepção de apenas alguns componentes em prejuízo da totalidade da vida. O que se escolheu fica em primeiro plano, mas a outra opção permanece no pano de fundo. Ao dividirmos assim a unidade surge a noção de tempo, essa criação da consciência, significando contemplar uma coisa e depois a outra. Essa sucessão de detalhes escolhidos estabelece o fluxo do tempo.

Esses fatores de escolha tornam-se de uma importância fundamental, pois se concentrarmos em algumas opções sistemática e compulsivamente, perderemos outras. Administrar o tempo passa a ter de caráter quase divino, tal a sua importância para a consciência. A responsabilidade precisa ser assumida dentro dos padrões da consciência individual, sob pena de perda do controle do fluxo da vida e das opções. Quando uma pessoa diz solenemente que não tem tempo, está mostrando sua incapacidade e submetendo-se a alguns pontos que, mesmo sendo importantes, estão tiranizando a atenção em prejuízo da totalidade do ser humano.

Essa situação crítica pode ser vivenciada em fases distintas na vida das pessoas. Entretanto, como um padrão de repetição, certamente trará conseqüências desagradáveis a longo prazo, muitas vezes conduzindo a processos de sofrimento e somatizações. Quem afirma não ter tempo disponível parece clamar por uma ajuda ou apoio, esquecendo-se de que uma análise do seu potencial interior para integrar a totalidade é o caminho mais natural e profícuo. As recompensas externas são importantes, mas não suficientes para que o quadro volte ao mínimo de harmonia mais realista e duradoura. Enquanto não for reconhecida de fato a situação limite a que se chegou, nada poderá ser modificado.

O estilo materialista e consumista do mundo atual colabora com esse cenário que pode levar para a depressão, a neurose e a perda do sentido de vida. A natureza não deixa passar impunes as agressões e contenções dos componentes instintivos e irracionais que participam da vida. A racionalização de que é necessário suprir a vida sempre com conquistas e trabalho exterior funciona como verdadeira agressão ao mundo inconsciente e corporal. Há sempre um preço a pagar quando deixamos de considerar as necessidades da vida, que precisa fluir mais plenamente. Não ter tempo é o mesmo que não ter vida e uma rendição a apenas alguns dos seus aspectos.

O Enuma Elisch mostra a importância universal dos “deuses” formadores da consciência que precisam ser respeitados. A sua criação, tanto para os povos antigos como para os bebês modernos, apresenta conflitos, movimento e barulho que tumultuam o estado inicial de imobilismo e dependência. Isso desperta o “mundo dos monstros” do inconsciente e os instintos devoradores. Mas surge o herói Marduck com o vento que simboliza o espírito renovador e vivificante, conseguindo jogar a sua rede e dominar a indiferenciação perigosa do mundo do inconsciente maternal. Ele faz a divisão com o uso da espada, símbolo masculino da diferenciação, da separação e da discriminação para melhor analisar e conhecer.

Os deuses têm interesses em que o homem amplie sua consciência, já que isso parece ser-lhes benéfico. O homem luta contra o caos no lugar dos deuses, esta é a sua verdadeira adoração. Assim o homem se torna ciente de que é diferente dos deuses e que não pode a eles se igualar.

A consciência traz a capacidade de refletir (do latim reflectere) e isso significa flexionar para trás, isto é, tornar-se ciente da própria condição. A criação precisa tornar-se consciente de si própria. Isso seria honrar o criador e a demanda de adorar os deuses, administrando os conflitos e estabelecendo as prioridades para a ação. E isso só é possível através do contato com o próprio interior onde estão os deuses e a centelha divina (Si-mesmo, Self).

O Tempo (um dos deuses cósmicos) precisa ser honrado, respeitado e reverenciado, o que se mostra essencial para a maior saúde psíquica que também se manifesta através da qualidade de vida. A administração do Tempo deve merecer nossa elevada prioridade se quisermos alcançar uma vivência mais plena.


Ref.
(1) JACOBY, Mario. Conferências em Zurique. 1971.
(2) DETHLEFSEN T e DAHLKE R. A Doença como Caminho. São Paulo: Cultrix, 2006.

09 fevereiro 2009

O fator tempo (1)




O tempo cronológico, também chamado de linear, é um dos aspectos mais importantes do estilo de vida atual. Tantos são os afazeres, as tarefas, os projetos que a vida se esvai inexorável e insistentemente. A gíria “Estou correndo atrás....”, é a imagem que nos remete à dolorosa realidade de pessoas que não conseguem articular e desenvolver aquilo que julgam precisar. Para aumentar ainda mais o grau de ansiedade, dizem que a ciência comprovou que o tempo está realmente acelerado, fazendo com que as pessoas se sintam ainda mais devedoras de novas tarefas e futuras atividades. Assim, aumenta o desgaste e a sensação de incapacidade para realizar o que é necessário.

A falta de tempo está se tornando um mito moderno que serve de pretexto para nos desvencilharmos de compromissos relacionados com as relações humanas e atividades comuns da vida cotidiana. Tudo isso passa a influenciar a qualidade de vida, a saúde, aumentando a sensação de desgaste e solidão. Nesse ritmo, fica patente que as relações pessoais passam a ficar em segundo plano, assim como há evidência de que temos dificuldades em priorizar nossos próprios interesses.

Nesse contexto, surgem alguns movimentos questionadores desse ritmo de vida apressado, de forma a valorizar o estilo mais lento e autêntico. Como exemplo, após a dominação do conceito de comida muito rápida para se ganhar tempo, surge a tendência ainda localizada e incipiente de retorno ao tipo de alimentação natural e que incorpore um ritmo mais lento. São pequenos indícios de que nem tudo está perdido; há salvação nessa correria desenfreada! Entretanto, verdadeiros desafios para ordenar as atividades não constituem invenção da modernidade.

Na Grécia antiga, a “tecné” tinha os componentes de arte e criação, sem privilegiar quantidade ou linha de produção. Valorizava-se a liberação de mais tempo para lazer, festividades, poesia, teatro, festas pagãs e religiosas. O desenvolvimento da medicina ocorreu em Epidauro, centro de tratamento que incluía os fatores do corpo e da mente. Era importante a prática de atividades que trouxessem satisfação e prazer, assim como era valorizada a disponibilidade para o ócio. Sem esse tempo livre não poderia haver saúde.

O grego levava esse assunto tão a sério que só algo muito importante o convencia a negar o ócio, ou seja, precisava de argumentos sólidos e consistentes para sair e fazer um “negócio”. Atualmente esta equação parece estar totalmente invertida, com elevado valor em se fazer sempre bons negócios. E o tempo disponível para a saúde física, mental e espiritual?

O mundo do trabalho é absolutamente necessário, mas não podemos ter nossa identidade formada com o predomínio absoluto dos aspectos profissionais (persona!). Assim, a primeira pergunta que se faz a outra pessoa que se conhece diz respeito à sua profissão. Esta curiosidade é natural e complementar, mas não podemos descrever, compreender ou limitar o ser humano apenas por sua atividade de trabalho. A própria etimologia da palavra “trabalho” vem do latim “tripalium”, que significa instrumento de tortura, do mesmo modo que labor significa sofrimento.

O trabalho não é um problema em si, mas sim o que estamos fazendo com ele. O mesmo dignifica o ser humano, mas precisa constituir-se também em fonte de prazer e de liberdade. Em muitos casos ele é transformado em atividade enfadonha, cansativa, causadora de mortes, doenças e insatisfações. E as pessoas não são apenas “recursos humanos”.

A palavra “ócio” apresenta outros desdobramentos que não apenas o pejorativo tão habitualmente utilizado. A sua etimologia mostra que ela vem do grego “skolé”, originando no latim o termo “schola”, que significa “escola” em português. Como “trabalho” está associado com negar o ócio, diz-se que Filosofia, Ciência e Arte são filhas do ócio, ou seja, da “Escola”. São assim atividades que podem privilegiar o ser humano integral e não apenas o seu componente produtivo.

A visão grega das atividades e do próprio mundo era integradora, contemplando todos os aspectos conhecidos. E não vamos ao encontro dessa visão para desmerecer o trabalhar e sim mostrar que ele pode ser integrado com outros interesses e atividades para o ser humano, de maneira a trazer benefícios para todos.

A escola atual nos remete à idéia mais abrangente de educação, atividade que deveria ser mais valorizada como referência da sociedade em preparar os cidadãos para a vida. Há a preocupação em ampliar o conhecimento histórico-cultural-científico, mas grande omissão em valorizar os aspectos humanos e ensinamentos como o estabelecimento de metas e prioridades individuais e coletivas, como também na administração de tempo e energia. Nesse prisma, a discussão em torno do ensino religioso poderia abranger aspectos mais amplos e espirituais de realização do ser humano.

Quaisquer obras e realizações das pessoas, entretanto, pressupõem um planejamento de atividades que leve em conta a administração do fator tempo. Esse é um ponto crítico atual, pois o progresso, o conhecimento e as novas tecnologias parecem despertar sempre mais e maiores necessidades nas pessoas. E assim aperta-se esse círculo de exigências auto-impostas, aumentando as preocupações por mais atividades e menos tempo disponível.

Os poetas e os artistas sempre apreciaram a exploração do tema. Um exemplo de Gilberto Gil, realçando este fator no trono da elevada importância nas vivências:


TEMPO REI

Não me iludo, tudo permanecerá do jeito
Que tem sido, transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar, Corcovados
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole, pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento

Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei, transformai as velhas formas do viver
Ensinai, ó Pai, o que eu ainda não sei, mãe senhora do Perpétuo socorrei

Pensamento, mesmo fundamento singular
Do ser humano, de um momento para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos

Mães zelosas, pais corujas
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam, não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo




O alerta da transitoriedade nos toca a sensibilidade pelo lado artístico. A concentração plena no trabalho e nas personas nos afasta dos amigos, da família e da vida mais plena. E tudo pode estar por um segundo!

Caetano Veloso alça o tempo além de um reino, como um dos deuses mais lindos. Conseguirá o ser humano fazer acordo com ele?




ORAÇÃO DO TEMPO

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Vou te fazer um pedido
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Entro num acordo contigo
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Ouve bem o que eu te digo
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Quando o tempo for propício
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definitivo

Tempo, tempo, tempo, tempo
E eu espalhe benefícios
O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Apenas contigo e comigo
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Não serei nem terás sido
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Num outro nível de vínculo
Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Nas rimas do meu estilo
Tempo, tempo, tempo, tempo.
Obs. O próximo artigo será continuação deste e poderá não ser remetido para a lista de emails, mas estará disponível no em http://kairos800.blogspot.com/
Participe conosco. Comente, dê sugestões.......... é importante para nós saber como os artigos estão sendo recebidos por você!
Obs. Recebemos de uma pessoa "anônima" a sugestão de fazer um artigo sobre um certo poeta português de nome provável José Vicente Carvalho. Houve um problema técnico ao manusear o texto no blog e a sugestão foi perdida. Solicitamos que a pessoa interessada confirme esse nome ou o corrija, por favor, para que possamos verificar a possibilidade de um texto sobre ele.


04 fevereiro 2009

Aedos e rapsodos - 2 Manuel Bandeira





Aedos e rapsodos - 2 Manuel Bandeira

Continuando a série de artigos em homenagem aos poetas brasileiros, falaremos de Manuel Bandeira, que contemplou os amantes da poesia com o belíssimo livro “Estrela da Vida Inteira”.

Manuel Bandeira foi um dos mais admirados escritores nacionais, inspirando muitos novos poetas e compositores. Bandeira possuia um estilo simples, direto e suave, talvez o mais lírico dentre os poetas brasileiros. Abordava temáticas cotidianas e universais, lidando com formas e inspirações do dia-a-dia. Como profundo conhecedor de literatura, utilizou temas simples usando formas inspiradas nas tradições clássicas e medievais.

“Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah! Se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Se eu soubesse repor –
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância.”

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho nasceu no Recife no dia 19 de abril de 1886. Aos dezoito anos o autor soube que estava tuberculoso, tendo por este motivo abandonado suas atividades e buscado novas localidades com clima mais apropriado para cuidar de sua saúde. Passou temporadas em diversas cidades: Teresópolis, Maranguape, Uruquê, Quixeramobim.

".... - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino."

Em 1917, publicou seu primeiro livro: A cinza das horas, numa edição de 200 exemplares custeada pelo autor. Bandeira sofria de certa melancolia e angústia pelos riscos de vida em pela falta de tratamento específico que significava a tuberculose naquela época. A todo momento e lugar a morte rondava sua obra poética. Sua poesia conjugava seu drama pessoal e o conflito de estilos poéticos daquela momento histórico (1922 – Movimento Modernista). Isto se faz conhecer em poemas suaves, quando inesperadamente, comentários mordazes interrompem a fluência dos versos.

“Sou bem nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida
Rugiu como um furacão.

Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah! Que dor!
Magoado e só,
- Só! – Meu coração ardeu

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria....
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
- Esta pouca cinza fria....”

Em 1940 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, quando passou a lecionar literatura hispano-americana da Faculdade Nacional de Filosofia. Era o amigo dos amigos e sofria cada vez que Mario Quintana perdia sua indicação para Academia de Letras. Em poesia esperava por Guimarães Rosa para o chá das cinco. Como Rosa achasse que iria morrer quando ali tomasse posse, adiou ao máximo o momento de fazê-lo.

“Não permita Deus que eu morra
Sem que ainda vote em você,
Sem que, Rosa amigo, toda
Quinta-feira que Deus dê
Tome chá lá na Academia
Ao lado de vosmecê,
Rosa dos seus e dos outros
Rosa da gente e do mundo,
Rosa de intensa poesia
De fino olor sem segundo;
Rosa do rio e da rua
Rosa do sertão profundo!”

Poeticamente, em seu livro Grande Sertão: Veredas, Rosa respondeu num diálogo imaginário:
“ Amor vem de amor. Amizade dele, ele me dava e amizade dada é amor.”

Ao que respondeu Manuel Bandeira em tom de pedido:

Respondo a Guimarães Rosa
Em pé de romance assim:
Vou pedir ao Maçarico
Vou pedir ao Miguilim
Que a mano Rosa eles digam:

“Rosa não seja ruim
Faça a vontade do bardo
Ainda que bardo chinfrim”
E eu secundo mano Rosa
Rosa, rosai, rosae, rosoe,
Vou aos meus dias pôr fim
Antes, porém, me prometa,
Pelo senhor do Bonfim
Que a minha futura vaga
Você se apresenta, sim?
Muito saldar a Riobaldo,
Igualmente a Diadorim.

Bandeira, que sofreu a vida inteira pela possível iminência de morte devido a tuberculose, viveu para ver seu amigo Rosa falecer logo após tomar posse na Academia Brasileira de Letras.

Seus poemas se mantêm entre a dor suprema e a alegria extremada compensatória. Seus objetos de desejo eram inalcansáveis e o prazer não se encontrava na satisfação do desejo, mas na excitação do abandono e da perda. Bandeira adotou formas modernistas, abandonando a métrica tradicional e promovendo o verso livre, de forma a acompanhar a tendência do Movimento Modernista.

Comemorou 80 anos em 1966, quando lançou os livros Estrela da Vida Inteira (poesias completas e traduções de poesia) e Andorinha Andorinha (seleção de textos em prosa, organizada por Carlos Drummond de Andrade). No dia 13 de outubro de 1968 morreu o corpo do poeta Manuel Bandeira, mas a sua poesia ficou e perdurará para marcar a trajetória de um dos grandes expoentes brasileiro na literatura do século XX.

“Tu que me deste o teu carinho
E que me deste o teu cuidado,
Acolhe ao peito, como um ninho
Acolhe o pássaro cansado,
O meu desejo incontentado.

Há longos anos ele almeja
Em aflita escuridão
Sê compassiva e benfazeja
Dá-lhe o melhor que ele deseja
-Teu grave e meigo coração.

Sê compassiva se algum dia
Te vier do pobre agravo e mágoa
Atenue a sua dor sombria
Perdoa o mau que desvaria
E traz os olhos rasos de água.

Não te retires ofendida
Pensa que nesse grito vem
O mal de toda a minha vida
Ternura, inquieta e malferida
Que, antes, não dei nunca a ninguém.

E foi melhor nunca a ter dado:
Em te pungindo algum espinho
Cinge-a ao teu seio angustiado
E sentirás meu coração
E sentirás o meu cuidado.”

01 fevereiro 2009

Mário Quintana

O último artigo, sobre Mário Quintana, foi publicado com algumas incorreções. Pedimos desculpas por isso e informamos que o texto foi modificado e corrigido.