12 novembro 2008

Versões dos Mitos


Ver filmes sobre mitologia pressupõe uma atitude crítica que não difere de quando vemos outras histórias projetadas na tela. Na realidade, pouco importa se as narrativas foram inventadas como forma de ficção. Os cinéfilos ficam atentos aos mínimos detalhes, imaginando, em todo momento, qual a intenção do diretor, que é um verdadeiro contador de histórias. Cada cena, imagem ou diálogo são intencionais e certamente remeterão a uma estrutura geral e estratégica planejada pelo diretor. Afinal, conseguiremos antecipar os desdobramentos da história e prever as reviravoltas da trama e o final do filme? Conseguiremos apreender sua mensagem subliminar?

Apreciar as narrativas sobre mitologia leva a um comportamento pleno de expectativas. Mas, nos casos que envolvem mitos, é importante esclarecer ainda mais alguns aspectos.

Como vimos, as versões de TRÓIA e HELENA DE TRÓIA apresentam os mesmos personagens com características e personalidades totalmente diferentes. No primeiro, Brad Pitt personifica um Aquiles mais heróico e filho de uma deusa (Tétis). No segundo, o herói não assume o mesmo grau de importância ou destaque. Helena também é apresentada em duas versões distintas: uma aventureira capaz de causar uma guerra sem proporções ou como autêntica filha de Zeus, capaz dos maiores sofrimentos em nome do amor. Essas diferenças nos levam a questionar, levando em conta nossos aspectos lógicos e racionais, sobre qual seria a verdadeira história escrita por Homero. Mas seria essa indagação algo tão importante? Vamos utilizar Jung como nosso guia (1*, p.112) para tentar desvelar essa questão.

Para captar o sentido do mito precisamos abrir mão do predomínio dos aspectos racionais e lógicos. Esses princípios norteiam o espírito científico, que verifica o fenômeno do simbolismo como verdadeiro aborrecimento, pois os símbolos não se deixam apreender de maneira completa e precisamente apenas pelo intelecto. Nesse ponto aparece nossa resistência em aceitar várias versões dos mitos. Sem perceber diretamente, desejaríamos apreciar as histórias de forma mais simples, linear e lógica.

Entretanto, a origem dos mitos remonta ao primitivo contador de histórias, aos seus sonhos e às emoções que a sua imaginação provocava nos ouvintes. Esses contadores não foram gente muito diferente daquelas que gerações posteriores chamaram de poetas ou filósofos. Não os preocupava a origem das suas fantasias; só muito mais tarde é que as pessoas passaram a interrogar de onde vinha uma determinada história. No entanto, no que hoje chamamos de Grécia ‘antiga’ já havia espíritos bastante evoluídos para conjeturar que as histórias a respeito dos deuses nada mais eram que tradições arcaicas e bastante exageradas de reis e chefes há muito sepultados. Os homens daquela época já tinham percebido que o mito era inverossímil demais para significar exatamente aquilo que parecia dizer. E tentaram, então, reduzi-lo a uma forma mais acessível a todos.

Assim, os aedos e rapsodos, que contavam histórias nas praças da antiga Grécia, foram os precursores dos poetas, artistas e até mesmo dos filósofos. Eles levavam as pessoas a refletir sobre suas vidas, incluindo a participação coletiva no passado, presente e futuro.

Todavia, os gregos se autopersuadiram de que seus mitos eram simples elaborações de histórias racionais ou ‘normais.... Algo parecido ocorreu na história recente com relação aos sonhos quando alguns estudiosos concluíram que eles não significavam o que pareciam significar. Essa forma de abordar o assunto percebia de forma absolutamente reduzida imagens ou símbolos que apresentavam.

Perceber a grandeza de mitos e símbolos é algo que exige toda a personalidade e não apenas a percepção pela razão (hemisfério esquerdo do cérebro!). Esses conteúdos normalmente têm mais de uma explicação e apontam para direções diferentes, pois se referem e tocam nossos conteúdos inconscientes ou parcialmente conscientes.

Mitos e símbolos nos atingem trazendo afetos e emoções que não podemos encerrar em definições absolutas, mostrando assim a intervenção do inconsciente, ou seja, algo que não conhecemos ou captamos apenas em certa parcela.

Inconsciente e emoção são dois fatores participantes de nossas vidas e precisam ser levados em consideração. Quando percebemos a dinâmica de suas atuações, torna-se claro que é impossível abarcá-los somente com nosso pensamento racional. Compreendendo-os ou não eles participam do fluxo de nossas existências. Os símbolos que os provocam carecem de assimilação e integração. Nosso próprio inconsciente produz seus símbolos, que surgem espontaneamente nos sonhos, nas artes, nos mitos e em muitas expressões humanas..

O grande poeta Fernando Pessoa acredita no uso de palavras como um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual, pois elas contêm uma idéia e uma emoção. Ele percebe na arte clássica (grega e romana) uma disciplina natural, espontânea que está nas emoções com uma harmonia comum à alma, repelindo o que é excessivo. Isso é sentido e não pensado, não é uma deliberação da mente. Assim, buscam-se o ritmo e a emoção na harmonia que toca a alma.

Essa forma de perceber o mundo externo se disponibiliza quando são acionados os conteúdos internos de cada pessoa. Ao vermos as figuras mitológicas em ação, na forma que são contadas ou narradas pelos contadores de histórias ou nos próprios filmes, é importante perceber em que ponto somos tocados. Algo em nós entra em sintonia com a forma de agir dos personagens que admiramos, ou que então nos incomoda com aspectos desconfortáveis para a nossa própria personalidade.

Procurar a versão mais verdadeira e correta seria uma tarefa apenas intelectual e inglória. O próprio Homero, ao citar deuses, homens, mulheres e heróis na Guerra de Tróia se baseou em narrativas que se sucederam e sofreram transformações durante mais de três séculos. O que ele narrou sofreu certamente a interferência do seu ponto de vista pessoal e dos interesses que tinha em mente no momento daquela sua criação. O mito desperta em cada um a sua capacidade de co-criador da história e de como percebe o mundo. As histórias são fortes por si mesmas, despertando muitos motivos interiores em todos nós. Esse é o aspecto relevante e que pode contribuir para o autoconhecimento. O mestre Junito Brandão percebia nas várias versões o pulmão do mito, algo que o mantém vivo e energizado, podendo ser contado e recontado sucessivamente. O seu valor está nos conteúdos que desperta e a nossa própria reflexão sobre tudo isso.

Os mitos são organizadores e formadores da consciência, o que podemos ver claramente funcionar quando as crianças apreciam as histórias infantis, Sua ação vai do caos inicial à formação do cosmos e da ordem para cada um de nós em particular. Esse é o nosso processo que enfrentamos desde que nascemos, ou seja, a formação e a ampliação da consciência.

Cada pessoa pode perceber e trabalhar com o que foi despertado e tocado pelo desenrolar das histórias. Por exemplo, o que tenho a ver com a falta de escrúpulos de um rei como Agamêmnon ou com a excelência do desempenho de Aquiles e seus objetivos de glória, mesmo rumando para a própria morte? E as ofertas das deusas ao jovem Paris, o que isso tem a ver com os meus valores de ontem e de hoje? Se os cenários e as faixas etárias mudam, certamente haverá mitos adequados que terão e despertarão conteúdos próprios nessas diferentes ocasiões.

Prestamos atenção no desenrolar de histórias e filmes pretendendo antecipar as intenções e conseqüências das opções do diretor. Vemos mudanças, alternâncias, seqüências, conseqüências e muitas coisas (não) muito interligadas, relacionadas ou não. Desenvolvemos o gosto de participar da história através da nossa própria identificação com os papéis de alguns personagens, normalmente um em particular.

Estas reflexões precisam ser integradas nas nossas vidas. A começar pelo valor da imagem e das emoções decorrentes. Como tudo isso interfere e participa no que estamos construindo em nossa existência? Certamente viveremos melhor quando estivermos seguindo o nosso mito pessoal como um todo. Ou seja, quando assim assumimos a responsabilidade de produzir, dirigir e agir no filme das nossas próprias vidas.


Ref.
(1). JUNG, Carl Gustav et al. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.



Um comentário:

Anônimo disse...

Estou adorando o blog. Aprendi um monte de coisas interessantes,como a história do Aquiles desde o início. Gostei mesmo. Estou pensando tambem em aliviar meu hemisfério esquerdo, uma vez que meus problemas de saúde, como enxaqueca e ciática são sempre do lado direito.