12 dezembro 2008

Feliz Natal! Ótimo 2009!




I - Desejamos a todos os amigos e assinantes do blog muita saúde, paz e harmonia para comemorar esta marcante data e época. É um rito de início de um novo ciclo e esperamos que o Menino Deus encontre eco junto da eterna criança que vive em todos nós. Que ela esteja desperta, atenta e liberada para usar de suas capacidades na esfera criativa e pronta a viver plenamente os necessários momentos lúdicos.

Essa liberação encontra o momento adequado próximo ao solstício de verão, quando os dias mais longos são propícios para mais intensa vida ao sol e ar livre. É o momento também adequado para profunda reflexão sobre as etapas e as passagens com que nos defrontamos no nosso caminho. Muita energia, equilíbrio e harmonia para todos.



II - Nosso Livro: MITOLOGIA E VIVÊNCAS HUMANAS


Já está disponível para as livrarias. A aquisição pode ser feita com remessa pelo correio pelo “Francisco” da Livraria Palmieri (endereço de email na barra esquerda do blog). É um livro para leitura e também para consulta, pois apresenta a Mitologia Grega de forma ordenada e comentada em termos de vivências humanas de todas as épocas. A contextualização do surgimento dos mitos, origens, povos e sincretismos são muito importantes, como também a narrativa final do livro que focaliza a importante transição sinalizada pelo mito de Édipo. A visão da Psicologia Analítica sobre narcisismo também é um ponto marcante.



III – Artigos no Blog


Faremos um recesso nesse período de comemorações, retornando até meados de janeiro de 2009 com novos artigos e contando com participação, sugestões e críticas dos amigos e assinantes.

Alguns artigos são mais densos que outros. Abordamos temas que podem ser complexos, mas são desenvolvidos de forma a facilitar ao máximo possível a compreensão pelo leitor não especialista do assunto. A finalidade é trazer certa reflexão e por vezes muitos conteúdos vão se relacionando e convergindo mais à frente com a apresentação de outros artigos.


IV – Cadastro no Blog


É muito importante para sabermos da participação real das pessoas. Estimula a continuidade dos trabalhos e mostra que a energia circula no grupo.


V – Curso de Férias


Ótima oportunidade fornecida pela Universidade Estácio de Sá em janeiro/fevereiro 2009. São apenas 4 aulas com assuntos muito interessantes. Ver a participação de Bosco, na barra esquerda do blog, ministrando disciplinas sobre Psicologia Analítica e também Sonhos.


VI – Grupos de Estudos 2009


Também indicados na barra esquerda do Blog. Oportunidade para aprender, discutir, refletir sobre a Mitologia e a Psicologia Analítica e suas interações na vida cotidiana. São manhãs, tardes ou noites plenas de satisfação, possibilidades de ampliar o auto-conhecimento, tudo isso com pequenos grupos e orientação adequada. São atividades muito prazerosas para quem participa. Faça contato conosco: inscreva-se!!!

09 dezembro 2008

O galo meteorologista do Carmélio


Os mistérios das Minas foram decantados pelo sensível ficcionista Guimarães Rosa. Quanto mais ele cresceu para o mundo mais se aprofundou na sua própria terra, conhecendo sua gente e seus campos ilimitados e Gerais.

“...Mas eu queria que a madrugada viesse. Dia quente, noite fria... eu dormia logo. Sonhava. Só sonho, mal ou bem, livrado. Eu tinha uma lua recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros pássaros... Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um bem-te-vi só... - Gente! Não se acha até que ele é sempre um, em mesmo?... E permaneci duvidando que seria – que era um bem-te-vi, exato, perseguindo minha vida em vez, me acusando de más-horas que eu ainda não tinha procedido. Até hoje é assim...” (*1, p. 30).

Coisas de Minas, onde existe um jeito especial de perceber e se relacionar com o mundo. O detalhe pode ganhar importância vital e os grandes fatos vistos com certa despretensão. Depende do momento, da inspiração, do vento, da natureza em volta. Tudo é percebido na doce mistura de sensação e intuição.

Sim, o mineiro autêntico se aproxima do objeto para percebê-lo com os cinco sentidos. Em cada situação ele parece ver, tocar, ouvir, cheirar e degustar o objeto da sua (des)atenção. Depois ele se afasta calmamente e começa a apreciar à distância. Tudo isso pode ser muito rápido. Ou não, depende da ocasião. E assim ele faz uma avaliação mais geral, deixa fluir sua intuição e tenta perceber de onde veio tudo aquilo e qual é o seu destino.

Avaliação de mineiro é assim – é por inteiro, no total. E nem por isso ele vai gostar de dizer sua opinião. Essa é só dele, a princípio. E assim ele vai vivendo junto com a natureza, integrando-se com os seus detalhes.

E você já viu um mineiro jogando truco? Aí ocorre o refinamento das artes teatrais, mostrando as inversões mais absurdas. Daquela carinha de aparente necessidade de auxílio surge a jogada final surpreendente e vitoriosa. Assim o jogo vira festa, vale subir na cadeira e até na mesa, numa euforia gritante e desequilibrada.

Meu amigo Carmélio era mestre nessas pelejas. Se deixassem que ele embaralhasse as cartas, podendo vê-las enquanto as manuseava, saberia a ordem completa à medida que o jogo fosse transcorrendo. Como? Não sei. Era assim. Ele era pessoa simples, sem muitos estudos, dava aulas de sensibilidade e sintonia com o mundo. Estava à frente do seu tempo, adorava desafios, novidades e trabalho.

De vez em quando eu ia até sua fazenda para usufruir do bom papo e calor humano, tudo isso com a desculpa de uma rápida pescaria nas lagoas provisórias das águas do Rio das Mortes. Essa era a fazenda Santa Lúcia, orgulho da família. Mas de certa vez ficamos restritos ao interior da casa-sede até não mais poder, pois a chuva não dava trégua. Depois de algumas rodadas de truco, divertindo-se a valer, mesmo sem deixar isso muito claro, ele se entusiasmou: “- Pessoal, vamos fechar o jogo e preparar a rede. A chuva já está passando... a pescaria será muito boa!”

A afirmativa categórica surpreendeu todo o grupo de amigos. Questionado, Carmélio perguntou se não ouvimos o canto do galo. Cada um vasculhou sua memória de curto e médio prazo e até nos cantos mais profundos. Alguns lembraram de ter ouvido a manifestação do rei do terreiro. E aí, o anfitrião, pescador e truqueiro, afirmou: “Se o galo canta desse jeito é porque a chuva está indo embora!”

Dez minutos após estávamos de saída, eufóricos para mais uma pescaria bem sucedida e plena de alegrias com o pesado troféu de lambaris, traíras, acarás e outros pequenos nadadores. E como bônus a mineirice da paisagem com coqueiros, rio, córrego, montanhas e os trilhos da “Maria-fumaça”, que cruzavam a região beira-rio da fazenda, onde se encontram os dois rios das Mortes: grande e pequeno. Um cenário encantador.

Muitos anos se passaram após essas marcantes vivências. O que fica registrado com mais energia na nossa memória é aquilo que toca nas profundezas do nosso ser e no nosso coração. Essas são as marcas que nos acompanham pelo resto da vida.

O prosseguir por vezes traz surpresas e ligações com o passado (e o futuro!). Vieram assim os estudos da Psicologia Analítica que mostram as ligações de tudo que é humano e universal. Muitos aspectos ligam todos os homens como se a humanidade fosse realmente uma só família. É encantador verificar os laços humanos na mitologia, artes, culturas, religiões, sonhos, folclore – tudo isso nos conduz ao mesmo rio na busca do mar comum a todos.

Jung encontrou forte componente histórico na Alquimia para ilustrar suas concepções sobre a Psicologia Analítica. É um estudo complexo e que mostra a sabedoria que esteve sempre disponível na história da humanidade, mostrando que a Psicologia Analítica tem seus paralelos e bases com o desenvolvimento do conhecimento do homem. Assim Jung valorizou imensamente o trabalho de Paracelso (1493-1541, médico, alquimista, físico e astrólogo) e cita algumas concepções (*2, p. 129-131):

A idéia das centelhas (scintillae) como sementes de luz que provinham do caos e da mente humana, estando assim presentes tanto no exterior como no interior de cada pessoa. Essa centelha de luz esclarece e ilumina o ser humano nos momentos difíceis e obscuros, ou seja, ele tem esse potencial criativo. E todas as coisas da natureza trazem, em níveis diferentes, essa centelha para a realização da vida. A sua percepção englobava a certeza de que tudo na natureza, incluindo os animais, tinham um certo “brilho” que dignificava sua própria existência.

No que diz respeito aos homens, esta visão pode ser comparada com a versão filosófica dos arché (a priori) das imagens eternas de Platão. Desse mundo das idéias vem a capacidade de verificação das “cópias” no mundo sensível e dos objetos. Esta noção mostra que os arquétipos possuem em si certo brilho ou semelhança com a consciência, realçando os conceitos de lúmen (relativo à luz) e númen (como se fosse algo mais brilhante que a luz, ou seja, percebido como divino). Estas centelhas surgem como inspirações e têm a propriedade de poder ampliar a consciência, trazendo assim novas possibilidades de vivências, enriquecendo a existência do ser humano. Cita Paracelso: “E do mesmo modo como no homem não pode existir nada sem o númen divino, assim também nada pode existir no homem sem o lúmen natural. São estas duas únicas partes: o númen e o lúmen que tornam o homem perfeito.” O assunto é complexo e ao mesmo tempo encantador.

Com os significados e menções ao longo da história desses termos por vários estudiosos, Jung foi verificando o embasamento para suas concepções práticas dos arquétipos e do Si-mesmo. Ele percebia nas pessoas a dinâmica entre o mundo interior e a vida prática das pessoas.

Prossegue Paracelso: “a estrela deseja levar o homem para a grande sabedoria... para que ele apareça maravilhoso na luz da natureza, e os mistérios da maravilhosa obra de Deus sejam descobertos e revelados em sua grandeza.” Ele compara cada homem com um astro e é como se o homem extraísse sua luz de uma estrela maior, sendo necessário que cada um venha a nascer para essa estrela. Menção parecida é feita por Mateus 5, 14: “Vós sois a luz do mundo.”

É importante observar que o homem é elevado assim a uma condição de um astro que recebe e proporciona luz, pois ele é “dotado com a luz perfeita da natureza”, sendo este o tesouro que encerra dentro de si.

Nesta concepção alquímica, a luz da natureza está sempre presente e tudo engloba. “Os animais também possuem a luz natural que é um ‘espírito inato.’” Como ilustração desse estado de participação...... “como os galos que anunciam com seu canto as futuras condições meteorológicas....”

Nesse ponto da leitura, sou inclinado a fechar o livro e os olhos. Há algo de humano compartilhado e sem as delimitações de tempo, espaço e cultura. Carmélio e seu galo meteorologista interagiam porque os canais estavam interligados e disponíveis naquela pessoa sintonizada com as coisas do mundo. Sua percepção através de outras funções que não o pensamento e o sentimento permitiam esse contato maior e mais amplo com a natureza assim disponível e iluminada por essa luz interior.

Certamente aquele amigo não teve contato algum com tratados alquímicos ou filosóficos, mas trazia dentro de si, cultivada e muito acesa, a luz e o númen inerentes ao ser humano. E que muitas vezes são desprezados, mas que podem ser despertados e liberados por um galo meteorologista!

A linguagem da natureza pode ser compreendida pelas pessoas sensíveis. Como disse Guimarães Rosa: “Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria.” O poeta cresceu em direção ao macrocosmo e retornou para a vivência também do seu microcosmo e do próprio interior.


Ref.
(1). GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
(2) JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2000. O.C. vol VIII/2.

08 dezembro 2008

A origem do Vento



O conhecimento do mundo à nossa volta pressupõe certa vontade, atitude e método. Como cada indivíduo apresenta diferentes graus dessas disposições, pode-se concluir que cada um percebe os fatos ao seu modo. Entretanto, alguns requisitos são importantes para que possamos formular idéias com base na experiência, mesmo que ela seja subjetiva. Essa atitude de priorizar os acontecimentos na sua prática e observação, tratando com um pouco mais de cautela a teoria, o dogmatismo e o metodismo tem nome: empirismo.

Mesmo que você já tenha ouvido dizer que empírico é algo baseado na “tentativa e erro”, sem metodologia científica, prefira a versão apontada acima. Muitas pessoas fazem suas observações naturalmente, tentando apreender os fenômenos que ocorrem à sua volta, de forma a ultrapassar a tentação de limitá-los nas suas causas, fazendo a clássica e muitas vezes única pergunta: “Por quê?”

A apreensão do que ocorre à nossa volta não poderia se limitar a esta única pergunta. Muitas vezes é importante ampliarmos o leque de questões, começando com “para quê?” e também “como isso ocorre?” E podemos ir catalogando, memorizando, observando tanto nos detalhes como nos aspectos gerais.

Jung agia dessa forma quando começou a trabalhar com doentes mentais no hospital psiquiátrico de Zurique (Burghölsly) no raiar do século XX, após concluir o curso de medicina. Naquela época não se dava ouvidos para os delírios desses pacientes, pois o meio médico julgava-os portadores de uma “demência precoce”. A equipe coordenada por Bleuler criou nova palavra para citar e definir a patologia: esquizofrenia (cisão + cérebro), passando a perceber o problema não como uma deterioração ou envelhecimento precoce do cérebro e sim uma separação ou algo que não funcionava de forma organizada e coordenada. O doente perdia o contato com a realidade, vivendo num mundo imaginário que para si próprio criava.

Nesse contexto, Jung começou a se interessar por mitologia, pois dava atenção ao discurso dos seus pacientes mesmo que não apresentassem certa lógica. O médico começou a perceber a importância dos conteúdos dos delírios que traziam motivos que se repetiam. Alguns temas também foram observados em sonhos apresentados em diferentes culturas, religiões, artes, contos de fada, folclore e outras manifestações humanas.

Jung agia como bom observador dos fenômenos à sua volta. Atento, circulando pelos corredores em 1906, foi abordado por um paciente que estava internado fazia muitos anos. Esta situação perdurava desde sua juventude e o mesmo não era especialmente bem dotado, apresentando delírios megalomaníacos e normalmente de natureza religiosa. O paciente tinha sido um pequeno comerciário e não desenvolveu sua escolaridade além do ensino médio.

Pois bem, ele estava junto a uma janela e convidou Jung para que participasse da sua visão. Muito compenetrado, sugeriu que o médico piscasse em direção ao Sol, balançando a cabeça. Como um sábio místico ensinando ao seu discípulo, esclareceu que assim seria visto algo muito importante. Com sensibilidade, Jung perguntou-lhe o que estava vendo, recebendo como resposta: “O senhor está vendo o pênis do Sol – quando movo a cabeça de um lado para o outro ele também se move e esta é a origem do vento”. Jung nada compreendeu dessa estranha idéia, mas, como empirista, tratou de anotá-la.

Quatro anos mais tarde, estudando mitologia, Jung descobriu um livro de Albrecht Dieterich lançado em 1903 (o paciente fora hospitalizado algum tempo antes) que esclarecia a fantasia. O autor era conhecido filólogo que pesquisara um papiro grego, mostrando texto com a prescrição religiosa para se fazer invocações a Mitra. Essa entidade era uma divindade solar persa de uma religião de mistérios surgida na época helenística (provavelmente no séc II a.C. que se difundiu nos séculos seguintes no império romano). As instruções do texto eram:

“Procura nos raios a respiração, inspira três vezes tão fortemente quanto puderes e sentir-te-ás erguido e caminhando para o alto, de forma que acreditarás estar no meio de região aérea... O caminho dos deuses visíveis aparecerá através do Sol, o Deus, meu pai; do mesmo modo, tornar-se-á visível também o assim chamado tubo, a origem do vento propiciatório. Pois verás pendente do disco solar algo semelhante a um tubo. E rumo às regiões do oeste, um contínuo vento leste; se o outro vento prevalecer em direção ao leste, verás, de modo semelhante, a face movendo-se nas direções do vento”.

Esse acontecimento não pode ser creditado a qualquer coincidência, mesmo se considerarmos que os motivos de Sol, Deus, vento e espírito são representações coletivas mostradas em várias religiões, incluindo os mistérios de Ísis no antigo Egito. Por serem humanos e gerais, esses temas também foram mostrados em pinturas medievais. Como mencionou Jung (*1, par 109), é fora de cogitação que o paciente tenha tido algum contato com o papiro ou a obra do filólogo. Afinal, “o paciente foi declarado doente mental aos vinte anos de idade. Nunca viajara. Em sua cidade natal, Zurique, não há qualquer galeria de arte pública que expusesse um tal quadro.” Ou qualquer quadro pintado na idade média.

Para Jung esse fato não prova a existência de um arquétipo ou do inconsciente coletivo, mas foi uma experiência marcante no desenvolvimento desses conceitos. Ele sistematizou o trabalho com os símbolos, percebendo que muitos deles podem ser reconhecidos como fenômenos típicos. Eles podiam ser isolados com clareza através de exames de uma série de sonhos e do seu próprio desenvolvimento dentro da série. O método comparativo de observação e trabalho foi adotado baseado nas observações práticas. A riqueza do material colhido era cientificamente instigante, prestando-se a um estudo comparativo e de acompanhamento das variações e modificações dos motivos mitológicos.

Desde que Freud mencionou os “resíduos arcaicos”, apenas Jung desenvolveu estudos nessa direção, chegando aos importantes conceitos mencionados. Eles exigem tempo e disposição para tentarmos assimilar toda a sua magnitude.

É uma boa técnica ir se aproximando e acostumando com esses termos calmamente, pois a tentativa de uma definição teórica, científica, linear e simplificada se mostrará insuficiente. A compreensão do que é humano ultrapassa o campo das teorias e pode muito bem ser observado na vida prática – tanto individual como coletiva.

De onde o paciente de Burghölsly tirou a imagem do falo solar? É como se a sua psique mostrasse fragmentos de conteúdos soltos participantes dos seus delírios, mas que certamente estavam na no seu interior por se tratar de uma mente humana. Mas como alertou Jung (*2, par.224), “Esta observação não ficou isolada: naturalmente não se trata de idéias hereditárias, e sim de uma predisposição inata para a criação de fantasias paralelas, de estruturas idênticas, universais, da psique, que mais tarde chamei de inconsciente coletivo. Dei a estas estruturas o nome de arquétipos”.

Os arquétipos seriam os elementos básicos do inconsciente coletivo, estrutura que recebemos ao nascer da mesma forma que o corpo biológico – espelhando toda a experiência anterior da humanidade tanto em termos de corpo como de psique. Por que apenas o corpo contaria a sua história desde os primórdios como se fosse um museu ambulante de órgãos?

A menção de corpo e psique lembra imediatamente a forte ligação entre arquétipo e instinto. Cada um se prontificando para as ações humanas, tanto corporais como psicológicas.


Ref.
(1). JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. O.c. vol. IX/1.
(2). JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 1999. O.c. vol. V.

04 dezembro 2008

Ponto de Mutação



Nesse livro (*1), o autor Fritjof Capra mostra a maneira como a Física moderna quebrou paradigmas em vários campos do conhecimento: Medicina, Psicologia, Biologia, Economia. O livro é leitura obrigatória para todos aqueles que desejam um conhecimento atualizado sobre a nova maneira de fazer ciência. No capítulo 11: “Jornadas para além do espaço e do tempo”, Capra faz um apanhado da Psicologia moderna desde Freud até o advento da Psicologia Transpessoal nos Estados Unidos em meados de 1960. É interessante verificar alguns comentários sobre a parte do capítulo em que o autor disserta sobre a Psicologia Analítica e os conceitos junguianos desde que foram enunciados.

Em uma de suas principais obras, Aion (*2), Carl G. Jung refere-se aos conceitos psicológicos e os físicos da seguinte forma:
"Mais cedo ou mais tarde, a física e a psicologia do inconsciente se aproximarão cada vez mais, já que ambas, inde­pendentemente uma da outra e a partir de direções opostas, avan­çam para território transcendente, (....) A psique não pode ser totalmente diferente da matéria, pois como seria possível de outro modo movimentar a matéria? E a matéria não pode ser alheia à psique, pois de que outro modo poderia a matéria produzir a psique? Psique e matéria existem no mesmo mundo, e cada uma compartilha da outra, pois do contrário qualquer ação recíproca seria impossível. Portanto, se a pesquisa pudesse avançar o suficiente, chegaríamos a um acordo final entre os conceitos físicos e psicológicos. Nossas tentativas atuais podem ser arrojadas, mas acredito que estejam no rumo certo"

O médico e pesquisador Jung emitiu diversos conceitos que nem sempre foram bem compreendidos por seus contemporâneos, passando posteriormente a serem valorizados e estudados com o avanço e as descobertas da física moderna. Grande parte de suas conceituações vão do começo até meados do século XX. Durante algum tempo, pela incompreensão de seus conceitos, foi chamado de esotérico, místico e religioso. Somente no final do século XX e começo do século XXI, o meio científico começou a vê-lo como gênio e outras denominações pertinentes àquelas pessoas que conseguem montar uma obra coerente e bem estruturada, porém adiante de seu tempo. Sua obra não está acabada, pois deixou em aberto várias questões para serem pesquisadas e complementadas, mas oferece amplo material para estudo e prática. Atualmente podemos destacar algumas de suas conceituações que já podem ser explicadas pela física e outras disciplinas.

Numa abordagem holística de saúde, Jung propôs a doença como um fenômeno mental que acarretava uma enfermidade física ou psicológica. Em seus estudos, ele foi além do paradigma mecanicista do começo do século XX. Ele foi o precursor em fazer a equivalência da psicologia com a física moderna e a teoria geral dos sistemas, quando estes nem haviam sido enunciados. Desde a mitologia grega, na cidade de Epidauro, Asclépio filho do deus Apolo, praticava e ensinava a arte médica vendo o homem como uma entidade integrada pelo corpo físico, mental e sociocultural. Jung privilegiou a visão sistêmica, compreendendo a psique em sua forma total nas relações. Ele percebia a psique como um sistema dinâmico auto-regulador, funcionando por alterações visando ao equilíbrio entre opostos. As idéias de Jung sobre a psique humana e a doença mental foram inovadoras e bastante modernas para o seu tempo. Para ele, “a mente é como um sis­tema auto-regulador ou, como diríamos hoje, auto-organizador, e a neurose, um processo pelo qual esse sistema tenta superar várias obstruções que o impedem de funcionar como um todo integrado” (*1, p. 354).

Concebeu ainda a energia psíquica como a força motriz para promover a dinâmica da vida. Descreveu esta energia com a linguagem da física clássica, mas a dinâmica era o que hoje os físicos descrevem como sistêmica. Pela Física moderna, o universo passa a ser visto como um todo dinâmico, indivisível, cujas partes estão inter-relacionadas. Assim, homem e natureza fazem parte da anima mundi, apresentando inter-relação em cada ato.

O conceito de Jung de inconsciente coletivo foi e ainda é o elemento que distingue sua psicologia de todos os outros teóricos. Para o autor o inconsciente coletivo mantém um vínculo entre o homem e a humanidade, ou ainda, entre o indivíduo e o cosmo. Esta conceituação está em pleno acordo com uma concep­ção sistêmica da mente, além de apresentar bastante semelhança com os fenômenos subatômicos descritos pelos físicos. Para Jung o inconsciente coletivo é constituído de arquétipos, que são padrões formados pelas experiências remotas da humanidade, estando as mesmas presentes pelos sonhos, mitos e contos de fadas. Para ele os arquétipos são “formas sem conteúdo, representando meramente a possibilidade de um tipo de percepção e ação”.

Devido ao profundo interesse por numerosas áreas de conhecimento, Jung estudou variados temas entre eles a religiosidade como ponto de transcendência do homem. Sua vasta experiência e pesquisa no campo religioso e espiritual o convenceu acerca da realidade da dimensão espiritual na psique humana. Ele verificou através da história das civilizações que religião e mitologia são fontes inesgotáveis de informações sobre a constituição dos arquétipos. “A orientação espiritual de Jung deu-lhe uma ampla perspectiva da ciência e do conhecimento racional. Ele chegou à conclusão de que a abordagem racional é meramente uma das numerosas abor­dagens possíveis, sendo que todas elas resultam em diferentes, mas igualmente válidas descrições da realidade. Em sua teoria dos tipos psicológicos, Jung identificou quatro funções características da psique - sensação, pensamento, sentimento e intuição -, que se mani­festam em diferentes graus em cada indivíduo”. (*1, p. 354).

O termo “sincronicidade” foi usado por Jung para definir a ocorrência de padrões psicológicos com ligação não-causal. O termo "sincronicidade" foi usado para as conexões não-causais entre as imagens simbólicas do mundo psíquico simultâneas com os eventos ocorridos na realidade externa. Trinta anos depois desta proposta de Jung, a física corroborou estas afirmações. “A noção de ordem ou, mais precisamente, de um estado de conexão ordenada surgiu recentemente como um conceito central na física das partículas, e os físicos, hoje, estão fazendo uma distinção entre conexões causais (ou "locais") e não­-causais (ou "não-locais"). Ao mesmo tempo, modelos de matéria e modelos mentais são cada vez mais reconhecidos como reflexos recíprocos, o que sugere que o estudo da ordem, tanto no estado de conexão causal quanto no não-causal, pode muito bem ser um caminho eficaz para explorar as relações entre as esferas interna e externa”. (*1, p. 354).

No trabalho analítico, ele recomendava ao terapeuta estar atento a si mesmo, verificando suas reações inconscientes diante do paciente. Os sonhos do paciente e do terapeuta devem ter a mesma atenção. Nada mais contemporâneo que a participação do observador no fenômeno observado. Só que esta constatação só foi verificada muito tempo depois que Jung propôs suas idéias. A teoria quântica mudou bastante a concepção clássica da ciência ao revelar o papel crucial da consciência do observador no processo de observação e ao invalidar, assim, a idéia de uma descri­ção objetiva da natureza.

Ao escrever sua autobiografia, Jung propôs: "Em minha opinião, ao lidarmos com indivíduos, somente a com­preensão individual servirá. Necessitamos de uma linguagem dife­rente para cada paciente. Numa análise, posso ser ouvido falando o dialeto adleriano, numa outra, o freudiano". Com efeito, o mes­mo paciente passa freqüentemente por diferentes fases no transcurso da terapia, cada uma caracterizada por diferentes sintomas e um diferente senso de identidade. Os terapeutas sabem que diferentes pacientes exibirão diferentes sintomas que, com freqüência, requerem distintas ter­minologias e, por conseguinte, diferentes enfoques terapêuticos.

A idéia de que o organismo humano possui uma tendência inerente para curar-se e para evoluir é uma questão que, desde o centauro Quíron, na Grécia antiga, era visto. Entre os conceitos junguianos, esta máxima é mantida. O paciente é guiado pelo terapeuta para o encontro com seu próprio curador interno. Para Jung, a terapia era um encontro entre seres humanos, onde além do diálogo consciente, havia um intenso diálogo inconsciente. Para que tal fato ocorresse era preciso um abaixamento de atitudes conscientes e defesas visando acessar o “curador ferido” que existe em cada ser. “Talvez o primeiro a perceber a psicotera­pia desse modo tenha sido Jung, que enfatizou vigorosamente a influência mútua entre terapeuta e cliente e comparou esse rela­cionamento com uma simbiose a química”. (* 1, p. 375/376).

Jung, mesmo sem poder explicar alguns de seus conceitos de maneira “científica”, teve a coragem de mantê-los, desafiando o espírito positivista que só acreditava naquilo que podia ser comprovado. Com a evolução filosófica e as descobertas científicas a partir dos anos cinqüenta no século XX, muitas teorias e conceituações puderam ser comprovadas por analogias com outras descobertas. Só agora, com o reconhecimento da compatibilidade e da coerência entre a psicologia jun­guiana e a ciência moderna é que as idéias de Jung poderão ser melhor desvendadas acerca do inconsciente humano e sua dinâ­mica, bem como da natureza da doença mental e o processo psicoterapêutico.


Ref.
(1) CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 1982.
(2) JUNG, C.G.. AION – Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988.

01 dezembro 2008

Dois filmes e Eros (2)


(continuação)

A questão do amor abrange aspectos amplos e diferenciados. O amor romântico se manifesta universalmente na paixão e complementação entre duas pessoas. Já nascemos com o signo da separação (cordão umbilical, mãe, pai, e fundamentalmente o surgimento do eu (ego) a partir da separação do Si-mesmo ou Self) . Assim, nossa sina torna-se a busca e a tentativa de complementação do que nos falta. Somos fugidores ou caçadores de nós mesmos, dependendo das nossas prioridades e circunstâncias.

O encontro amoroso do parceiro ideal é movido pela paixão desenfreada que surge através do amor. Mas da mesma forma que ele chega inesperadamente pode desaparecer, confirmando apenas o estado de paixão e não de puro amor. Mas não tratamos apenas da manifestação desse tipo de amor, pois as pessoas sentem amor pelos pais, pelos filhos, pela profissão, pelas artes, pelo país, e o amor maior por Deus e pela vida.

Esse amor maior e autêntico é aquele que permite as transformações e o próprio processo de individuação. Ele é veiculado pela alma que, partindo do contato interno numinoso (mais que luminoso, mágico e até mesmo divino) traz o amor pela própria vida e a busca do seu sentido. Esse encontro ocorre no somatório das pequenas e grandes realizações, incluindo as pequenas coisas do dia-a-dia e atingindo as grandes conquistas pessoais de todas as categorias.

O amor é a ligação plena com a vida, é um estado de elevação espiritual. E aqui não tratamos de algo apenas em teoria, pois se não temos uma comprovação científica dos efeitos do amor, percebemos seus resultados práticos na qualidade de vida que proporciona. O mesmo ocorre com relação ao Si-mesmo (Self), como menciona Von Franz (*1, p. 212): “No decorrer dos tempos, os homens, por intuição, estiveram sempre conscientes desse centro (organizador da psique). Os gregos o chamavam de daimon, o interior do homem; no Egito ele estava expresso no conceito de alma-Ba; e os romanos adoravam-no como o ‘gênio’ inato em cada indivíduo. Em sociedades mais primitivas imaginavam-no muitas vezes como um espírito protetor, encarnado em um animal ou um fetiche.”

Entramos em contato com o Si-mesmo pela nossa alma e ela é aprimorada através do sentimento do amor. Dessa forma, só podemos amar verdadeiramente uma outra pessoa se tivermos amor com a nossa própria alma e sensibilidade interior.

Von Franz ainda menciona o contato do eu com o Si-mesmo (centro da nossa psique, ou seja, consciente e inconsciente, o que conhecemos e o que não percebemos ainda): “Ouvindo-o, tornamo-nos seres humanos mais completos. O processo acontece como se o eu (ego) não tivesse sido produzido pela natureza para seguir ilimitadamente os seus próprios impulsos arbitrários, e sim para ajudar a realizar, verdadeiramente, a totalidade da psique. É o eu que ilumina o sistema inteiro, permitindo que ganhe consciência e, portanto, que se torne realizado. Se, por exemplo, possuo algum dom artístico de que meu eu não está consciente, este talento não se desenvolve e é como se fosse inexistente. Só posso trazê-lo à realidade se meu eu o notar. A totalidade inata, mas escondida, da psique, não é a mesma coisa que uma totalidade plenamente realizada e vivida.”

O amor é a ligação de cada um com a sua própria vida e com as outras pessoas e coisas, culminando com o próprio mundo em que vive. Outros tipos de ligação também ocorrem e os antigos gregos já estavam atentos, como nos mostra claramente o mito de Eros e Psiquê (MITOLOGIA E VIVÊNCIAS HUMANAS). A narrativa nos leva a refletir e a questionar sobre as aventuras do filho de deuses com uma filha de mortais. É importante esclarecer que Psiquê era vista como alma pelos gregos, ou seja, já havia a percepção de uma vida interior. Os desafios e a união desse casal primordial apontam para as potencialidades do amor.

Esse assunto também foi tratado por Platão (O banquete): “Assim, pois, eu afirmo que o Amor é dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após sua morte.”

Platão também esclarece Amor é um requisito para a existência de Afrodite. Existem duas figuras dessa divindade:Urânia ou Celeste e Pandemia ou popular. Assim podemos compreender que há dois tipos de amor: um é mais relacionado com enfoque nos sentidos e na sensualidade. Poderíamos então ligar o amor divino e celeste ao verdadeiro e grande amor pelo sentido maior da vida. Os amores humanos autênticos são decorrentes desse último e não apenas simples interesses de posse ligados ao eu (ego). Esse é o Amor que se inicia com maiúscula para Platão, conforme menciona o editor (*2, p. XXIII): “A construção do conhecimento constitui, assim, no platonismo, uma conjugação de intelecto e emoção, de razão e vontade: a episteme (estudo das ciências e apreciar seu valor para o espírito humano) é fruto de inteligência e Amor.” O amor romântico pode realmente ser a manifestação autêntica desse amor maior.

Platão é um filósofo por vezes mal compreendido, sendo muito mencionado apenas por parte de suas idéias. Reduzir sua noção de amor para algo apenas teórico e abstrato é interpretá-lo parcialmente. Ele apresenta o início de uma consciência reflexiva e a possibilidade de diálogo com a própria alma. Suas obras mostram a ascensão do mundo sensível para o mundo das idéias onde estaria a verdadeira realidade. Mas alerta que a ascensão é feita gradativamente e que o amor dos corpos engendra a imortalidade e a virtude, ou seja, a beleza pela sabedoria começa nas formas concretas e depois dessa percepção trata-se de continuar na ascensão para o mundo das idéias.

Se logos é o conhecimento discursivo e argumentativo, sua noção de “logos erótico” mostra o amor platônico à sabedoria que é atingida com a busca e a ascensão. O motor de tudo isso é o “logos erótico” que começa pelos “belos corpos”, não dispensa essa etapa empírica e concreta, mas continua ascendendo, pois Eros é o desejo de saber.

Estará mais apto para viver um grande amor a pessoa que estiver construindo o encontro interior entre logos e Eros. Quem estiver assim mais inteiro e na construção da sua totalidade estará em condições de não exigir do outro aquilo que ainda não possui. As paixões passageiras constituem uma busca da complementação momentânea do que falta. Entretanto, mesmo com a alternância de diversificadas fases, um amor autêntico pode muito bem ser vivido, funcionando como energia no processo de desenvolvimento individual dos envolvidos.

Não apenas Platão é mais complexo do que parece, mas o mesmo ocorre com muitos outros pensadores e com o sentimento de amor. Este se apresenta de muitas formas, mas é um dos eixos que também move o mundo. A questão do poder muitas vezes prevalece, mas as duas questões são inerentes ao ser humano. Muitas vezes é difícil perceber qual deles está predominando em determinada situação, mas os desdobramentos deixam claro as motivações e o valor que as pessoas usaram para suas ações.

O prosseguir mostra a ascensão ou estagnação de cada etapa. Enquanto isso as pessoas misturam amores e poderes.



Ref.
(1) JUNG, C. G. et al., O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
(2) Coleção Os Pensadores. Platão. Abril Cultural, 1979.